terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Livros "al dente" (uma divagação)

Dias desses estava ouvindo despretensiosamente uma rádio, quando um clássico dos anos 80 começou a tocar. Notei que a linha de bateria era marcada por constantes batidas num prato com som estridente, forte e alto... E lembrei seu nome: "china", pronunciado em inglês, tipo "chaina". Lembrei-me do "chaina" porque já tive uma banda de rock, e o "china" era um aparato essencial para qualquer baterista que fosse tocar conosco. Prato grande, com formato esquisito e som marcante... E aí, embalado por "Your Love", do The Outfields, passei a pensar sobre esses conceitos que apreendemos durante fases da vida e que, sem que percebamos, passam a fazer parte do nosso cotidiano.

Na faculdade de Direito, por exemplo, acontece muito. No início do curso (e também, para mim e para alguns colegas, no início da vida adulta, logo aos 18 anos), algumas definições nos escapavam. Sabe aquelas coisas que você sabe o que são, mas não consegue explicar? Pois é. E assim vi transcorrerem cerca de dois anos de ensino jurídico. Hoje, se converso com algum colega da mesma área, o juridiquês vem a cavalo preencher qualquer lacuna conceitual que haja no meu vocabulário. De repente, uma relação amorosa complicada passa a ser "sui generis", uma sinuca-de-bico vira "inexigibilidade de conduta diversa", uma briga com a namorada se transforma em "procedimento inquisitório" e, ainda que o discurso de torne estrogonófico e rocambolesco, como são os discursos jurídicos, a gente se entende.

Falando em estrogonofe e rocambole, passei a cozinhar recentemente. Minto, passei a cozinhar há mais ou menos dois anos, quando fui passar seis meses na cidade do Porto sem haver quem fritasse meus bifes e cozesse meu macarrão; digo que passei a cozinhar recentemente porque, mesmo durante todos esses meses no Porto, embora tivesse me aventurado diariamente na cozinha, não raro eu fazia apenas batatas assadas no microondas e as comia com sal e molho Heinz para saladas, ou então comprava uma comida pronta e a temperava com meus temperinhos prediletos: manjericão, salsa, alho desidratado, orégano etc. Recentemente é que passei a me arriscar um pouco mais na cozinha, e também a arriscar a integridade física daqueles que provam da minha gastronomia. Liste-se aí um arroz à piamontese com gosto de vinagre, um filé ao molho de mostarda frio e um tagliatelle com camarões com gosto de limão.

Bom, mas estávamos nos conceitos. E também em como, às vezes, os conceitos apreendidos ao longo da vida nos servem sem que possamos notar: como a utilizar o jargão jurídico na definição de coisas corriqueiras, ou lembrar o nome do prato da bateria que reproduz o som estridente de uma música dos anos 80. E falei de comida. Falei de comida porque a culinária, também ela, possui incontáveis expressões interessantes para a vida.

Veja aí, por exemplo, "sal a gosto". Conheço uma pessoa que detesta essa expressão, e diz categoricamente: "se eu soubesse cozinhar, não estaria lendo a receita; já que não sei e que estou lendo a receita, quero que me digam a exata quantidade de sal a colocar". Enfrento o mesmo problema toda vez que me ponho diante do fogão, mas minha saída é mais elegante: me abstenho de colocar qualquer sal (muitas vezes por esquecimento) e digo aos convidados que, na Itália, o costume é de que o sal fique à mesa e que cada um salgue seu prato conforme achar mais conveniente. Nunca acreditam - mas meu objetivo de vida, além do sucesso profissional e da felicidade afetiva, é fazer com que essa desculpa "cole" um dia.

Nessa divagação, surpreendi-me pensando na expressão "al dente". "Al dente", em minha tradução livre do italiano, língua em que sou versado, significa: ao dente. Refere-se ao ponto de cozimento das massas, e quer dizer que a massa "al dente" está em um ponto no qual é firme, mas não dura; no qual tem maciez, mas ainda oferece certa resistência "ao dente". No bom caboquês, quer dizer: "no grau". Para a gastronomia tradicional, "al dente" é o ponto perfeito para uma massa. Concordo, já que, pela própria experiência de ter servido macarrões duros demais ou molengos demais, sei que estes estados estão distantes da perfeição.

 "Al dente" quer dizer, então, "ponto ideal". Não pude deixar de pensar que às vezes alguns livros não estão "al dente" para nossa mastigação e deglutição, e precisam ferver um pouco mais no caldeirão das nossas experiências e conhecimentos, para que possam, enfim, serem "postos" para dentro de nós. Pior: às vezes tentamos "comer" um ótimo livro que não está "al dente" e, muito embora seja um ótimo livro, acabamos por ter uma péssima experiência literária.

Imagine só que um amigo seu vá para a Itália e traga de lá um pacote de massa artesanal deliciosíssima, que ele comprou de um pequeno produtor rural no interior da Sicília. Você, sabendo que eu tenho uma paixão por massas e vinhos, me entrega esse tesouro e me pede para prepará-lo. Eu, com toda a sabedoria que recolhi ao longo de anos, esqueço a massa no fogo enquanto me atrapalho ao tentar abrir o vinho, e ela passa do ponto. Sem dúvida que deveria ser saborosíssima, mas eu arruinei sua textura. Não será mais tão saborosa.

Assim são alguns livros - embora não precisem de um cozinheiro incompetente para lhes estragar a textura. Basta que o leitor não o tenha fervido por tempo suficiente com suas experiências, e o livro pode acabar por não ser tão bom quanto na verdade é.

Li "O Mundo de Sofia", de Jostein Gaarder, há muitos anos - e não o terminei. Meu irmão, um tanto antes, havia lido até o fim. O livro, a grossíssimo modo, traz a história de uma menina que passa a ter contato com a Filosofia, e, entre os relatos dela, uma dezena de lições filosóficas é colocada em pauta. Anos depois, meu irmão me confessou que havia lido o livro inteiro, mas que tinha pulado as lições filosóficas. Ora!, eu lhe disse, então não leu coisa nenhuma, e, se tiver lido, eu também li. Porque eu havia empacado justamente nas lições filosóficas, que me eram demasiadamente pesadas.

Estraguei, portanto, uma belíssima obra, por não tê-la devorado "al dente", por não ter esperado que ela amolecesse mais ao fervor de minhas experiências e meus conhecimentos.

Outros anos se passaram, e eu passei a trabalhar no Tribunal de Justiça, como estagiário de um magistrado que gostava muitíssimo de ler. Entre sentenças e decisões, comentei algo com ele de algum livro e passamos a conversar sobre literatura. Falei, não lembro por qual motivo, de "O Cemitério de Praga", então última obra lançada por Umberto Eco, e ele me indagou se eu já tinha lido "O Nome da Rosa", seu livro mais proeminente. E eu lhe disse que não: no dia seguinte, lá estava ele com o livro à mão, dizendo-me que eu deveria tomá-lo emprestado para ler.

Adianto um pouco minhas dúvidas: não sei se eu realmente "estraguei" o livro; se o livro foi estragado, por outro lado, não sei se quem o fez fui eu ou se foi meu chefe. Explico. Eu estava há pouco tempo naquele estágio, e não podia sobremaneira deixar de ler, primeiro porque assim desapontaria meu chefe, e segundo porque eu não saberia devolver o livro sem que tivesse lido e nem poderia ficar eternamente com o livro. Noutro passo, sentia que o livro era uma oportunidade de mostrar serviço, tanto quanto eram as atividades que eu lá desenvolvia, profissionalmente. Acabei lendo-o num tapa.

Evidentemente, lembro a história. Lembro-me até de alguns detalhes, o que é incomum para minha débil memória. Mas, conhecendo Umberto Eco e sabendo de toda a profundidade de sua magnum opus, terminei aquele livro desejando que o tivesse lido anos mais tarde, quanto eu talvez tivesse mais maturidade para compreender as questões filosóficas e históricas nele trazidas. Fechar o livro, ao seu término, me trouxe a alegria da tarefa finda e a tristeza da ignorância. Pior: sem qualquer recompensa.

Eu não esperava, de fato, uma recompensa por ter lido o livro, obviamente. Mas, ao retorná-lo, meu chefe se limitou a dizer "ótimo livro, ein? Gostou?", ao que prontamente respondi que sim e a conversa se encerrara. Tínhamos longas conversas sobre o Direito e a vida, e eu esperava ser de certa forma inquirido sobre o tema do livro, mas nem isso. Na semana seguinte, acabei emprestando-lhe "O Cemitério de Praga", livro que outrora fora pivô de um desentendimento com uma namorada; para minha surpresa, e também para os risos irônicos do destino, até hoje não me foi devolvido o livro. (Se bem que, até pouco tempo, por vezes ouvia do meritíssimo que estava lendo o livro, e que o seu curto tempo livre impedia que terminasse logo).

Fico pensando, de certo modo cabisbaixo, sobre todos os livros que já li e quantos deles foram deglutidos fora do ponto, sem que estivessem "al dente"; e também em quantos livros se empoeiram em minha estante, aguardando pacientemente até que a fervura da minha consciência os considere preparados... Aí se empilham "O Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterdã; "Fundamentos de Filosofia", de García Morente; "A Cidade Antiga", de Fustel de Coulanges, entre tantos outros.

Todos estas obras e livros
Jovens, velhos, novos e antigos
Um dia ficarão al dente?
Para serem consumidos
Por minha inquieta mente?

Paulo Lindoso

Um comentário:

  1. Ótimo texto! E justiça seja feita: apesar de frio, o filé ao molho de mostarda estava muito bom!

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