Olhando para trás agora, posso dizer seguramente que tive uma infância
feliz. Mas naquela época, por volta dos meus onze anos, eu carregava uma
frustração que me parecia insuperável: o fato de não ter um cachorro. Era
especialmente doloroso porque as circunstâncias em que vivíamos praticamente
pediam para que tivéssemos um: morávamos em uma casa grande e espaçosa,
dispúnhamos de tempo e - pior de tudo - éramos donos de uma loja de produtos
agropecuários, que entre outras coisas vendia inúmeros acessórios, medicamentos
e rações para cães.
Nada obstante, e contra toda lógica, o meu pai
(proprietário da loja) simplesmente não suportava cachorros. Aos meus
insistentes pedidos para que adotássemos um cãozinho ele tinha sempre a mesma
resposta: que eles não "serviam" para nada, a não ser para fazer
sujeira e quebrar tudo, e que isso estava completamente fora de cogitação. E de
nada importavam os argumentos sólidos e objetivos que vez ou outra eu
encontrava e que depunham a favor de se ter um cachorro em casa, meu pai
era firme no seu lema: cachorro não, fora de cogitação.
E assim eu ficava a escutar amargurado o latido
alegre dos cachorros dos vizinhos quando eles chegavam em casa; invejava os que
desfilavam com as mais variadas raças caminhando pelas ruas da cidade; vivia
enfim verdadeiramente desolado, pois o mundo inteiro tinha um cachorro e eu não
vislumbrava sequer a esperança de ter um tão cedo.
Eis que um dia, durante uma viagem de férias,
recebi a ligação de minha mãe trazendo a seguinte notícia: "Quando você
chegar em casa, vai ter uma surpresa!", e surpresa boa, ela fez questão de
acrescentar. Imaginei logo que tinha ganhado um videogame novo, talvez um
computador ou quem sabe um jogo que eu ainda não conhecia - eram minhas
melhores expectativas e qualquer delas me deixaria muito feliz. Mas quando ela
me buscou no aeroporto, adicionou um detalhe que desmistificou tudo que fosse
material: "Seu pai pediu para avisar que a surpresa vai ser um
botafoguense fanático!". E agora? Mamãe estaria grávida? Algum primo iria
morar conosco? Minha mente estava inquieta no caminho para casa, especulando
milhares de novas possibilidades até então impensadas.
Quando enfim chegamos, pulei para fora do carro e
corri para abrir a porta. Nada de diferente. Como eu esperava que a tal
surpresa se apresentasse logo de cara para mim, meu rosto foi logo tomando
feições de decepção. Mas minha mãe veio logo atrás e me apontou:
"Ali, Gabriel!". No canto da sala, uma pequena almofada azul. Em cima
dela, uma bolinha marrom menor ainda. Um filhote, um filhote diminuto. Acho que
nunca tinha visto coisa mais frágil, e olhava sem acreditar. Temos um cachorro,
é isso?
Então fiquei sabendo como chegamos a esse ponto:
maior que a aversão de meu pai pelos cachorros, só o amor que ele tinha pelo
Botafogo de Futebol e Regatas. Aconteceu então de ele conhecer a história do
cachorro Biriba, que havia sido adotado pelo folclórico presidente alvinegro
Carlito Rocha, e que dizia-se ter dado muita sorte pro clube na época. Como o time
ia mal das pernas naqueles tempos, meu pai resolveu fazer sua própria aposta,
como todo bom botafoguense supersticioso: pegou um pinscher zero (o menorzinho
que encontrou, para evitar maiores bagunças), deu o nome de Biriba e esperou
pra ver no que ia dar.
Completamente indiferente aos motivos de meu pai
(muito embora eu também seja botafoguense), pra mim o que importava era que
agora tínhamos um cachorro, e isso era um sonho realizado. Estava mais feliz do
que nunca e vivia a mimar o Biriba, que naquelas primeiras semanas andava torto
e desajeitado, de vez em quando topando contra as paredes, causando-nos êxtases
de fofura.
Biriba cresceu (não muito, obviamente) e tomou o
rosto de um cão confiante. Andava marchando e latia a qualquer ruído, convencido
que era de ser o guardião da casa. Adorava correr, sobretudo atrás dos
passarinhos, numa busca inalcançável. Dormia na sala, mas me acordava todos os
dias, arranhando incessantemente a porta do quarto até que eu me dignasse
abri-la, e então voltávamos a dormir juntos. Em dias de maior coragem, saíamos
para passear ou ficávamos brincando no quintal de casa mesmo. Eu gostava
especialmente de beliscar o Biriba, pois ele respondia com um rosnado e um
olhar tão furioso que eu achava a maior graça. E dava um dó tão grande quando
saíamos de casa deixando-o sozinho, pois até o último momento ele ficava nos
olhando com uma carinha triste, suplicando silenciosamente que não fizéssemos
aquilo...
Com o passar dos anos, Biriba já tinha
conquistado até o meu pai, muito embora o Botafogo continuasse terrivelmente
mal. Meus primos pequenos e meus amigos adoravam-no e eram frequentes visitas
na nossa casa exclusivamente para ele. Por essa época, percebemos a necessidade
de arranjá-lo uma namorada, pois estava a fazer amor loucamente e o tempo
inteiro com um ursinho de pelúcia. Foi então que encontramos uma pretendente a
duas ruas de nossa casa: chamava-se Belinha, uma pinscher escura e maior que o
Biriba. Deixamos ele na casa dela e desde cedo os dois se deram muito bem,
envolvendo-se com uma paixão arrebatadora.
Biriba ficou por lá pouquíssimo tempo, algo como
dois dias. Quando retornou, contudo, já não era mais o mesmo: estava
completamente apaixonado. Não dava mais a menor bola para o ursinho de pelúcia
nem corria atrás dos passarinhos. Suas preocupações passaram a consistir
basicamente em ficar sempre atento a um descuido de nossa parte com o portão da
casa para fugir apressadamente. E quando isso acontecia, já sabíamos onde
encontrá-lo: em frente a casa da Belinha, namorando por entre as grades,
trocando beijinhos de esquimó.
Foi então que um dia calhou de acontecer: era
noite e minha mãe chegava da faculdade. Ela abriu o portão e nem eu nem meu pai
estávamos prestando atenção no Biriba, que naturalmente aproveitou para fugir.
Mas dessa vez o cachorro da vizinha da frente estava solto, um vira-lata mal
encarado que inclusive chegou a me atacar certa vez. Não vi a cena, mas minha
mãe conta que ele deu uma única mordida no Biriba, que sequer latiu.
Desesperados, levamos ele correndo para um veterinário, mas já não tinha jeito:
uma hemorragia interna havia consumido meu primeiro e tão amado cachorrinho.
Voltamos para casa, todos chorando copiosamente.
Limpamos o Biriba e deixamos ele em sua caminha. Fui deitar e não consegui
dormir, atormentado pelo acontecimento. Biriba, que era tão valente, morreu em
silêncio. Tinha a cabeça em outro lugar, estava tomado pelo amor. E nós o
segurávamos, por isso ele precisava fugir. Será que ele morreu chateado
conosco, que prezávamos mais a nossa propriedade sobre ele do que seus próprios
sentimentos?
Não sei, não sei... O que sei é que quando
precisei levantar e ir para a escola no dia seguinte, passei pelo Biriba em sua
caminha e ele parecia estar simplesmente dormindo. E que logo acordaria e iria
arranhar minha porta. E rosnar aos meus beliscões. E correr atrás dos
passarinhos. Não pude evitar de chorar novamente.
Depois da aula, pela tarde, fizemos o enterro do
Biriba. Eu acompanhei tudo e o atestado de meus olhos é que hoje ele repousa
num terreno na parte de trás da loja, enrolado numa bandeira do Botafogo. Mas
prefiro acreditar sinceramente que agora ele é uma estrela solitária lá no céu,
que nos conduz.
Gabriel Coelho
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