quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Biriba

Olhando para trás agora, posso dizer seguramente que tive uma infância feliz. Mas naquela época, por volta dos meus onze anos, eu carregava uma frustração que me parecia insuperável: o fato de não ter um cachorro. Era especialmente doloroso porque as circunstâncias em que vivíamos praticamente pediam para que tivéssemos um: morávamos em uma casa grande e espaçosa, dispúnhamos de tempo e - pior de tudo - éramos donos de uma loja de produtos agropecuários, que entre outras coisas vendia inúmeros acessórios, medicamentos e rações para cães.

Nada obstante, e contra toda lógica, o meu pai (proprietário da loja) simplesmente não suportava cachorros. Aos meus insistentes pedidos para que adotássemos um cãozinho ele tinha sempre a mesma resposta: que eles não "serviam" para nada, a não ser para fazer sujeira e quebrar tudo, e que isso estava completamente fora de cogitação. E de nada importavam os argumentos sólidos e objetivos que vez ou outra eu encontrava e que  depunham a favor de se ter um cachorro em casa, meu pai era firme no seu lema: cachorro não, fora de cogitação.

E assim eu ficava a escutar amargurado o latido alegre dos cachorros dos vizinhos quando eles chegavam em casa; invejava os que desfilavam com as mais variadas raças caminhando pelas ruas da cidade; vivia enfim verdadeiramente desolado, pois o mundo inteiro tinha um cachorro e eu não vislumbrava sequer a esperança de ter um tão cedo.

Eis que um dia, durante uma viagem de férias, recebi a ligação de minha mãe trazendo a seguinte notícia: "Quando você chegar em casa, vai ter uma surpresa!", e surpresa boa, ela fez questão de acrescentar. Imaginei logo que tinha ganhado um videogame novo, talvez um computador ou quem sabe um jogo que eu ainda não conhecia  - eram minhas melhores expectativas e qualquer delas me deixaria muito feliz. Mas quando ela me buscou no aeroporto, adicionou um detalhe que desmistificou tudo que fosse material: "Seu pai pediu para avisar que a surpresa vai ser um botafoguense fanático!". E agora? Mamãe estaria grávida? Algum primo iria morar conosco? Minha mente estava inquieta no caminho para casa, especulando milhares de novas possibilidades até então impensadas.

Quando enfim chegamos, pulei para fora do carro e corri para abrir a porta. Nada de diferente. Como eu esperava que a tal surpresa se apresentasse logo de cara para mim, meu rosto foi logo tomando feições de decepção. Mas minha mãe veio logo atrás e me  apontou: "Ali, Gabriel!". No canto da sala, uma pequena almofada azul. Em cima dela, uma bolinha marrom menor ainda. Um filhote, um filhote diminuto. Acho que nunca tinha visto coisa mais frágil, e olhava sem acreditar. Temos um cachorro, é isso?

Então fiquei sabendo como chegamos a esse ponto: maior que a aversão de meu pai pelos cachorros, só o amor que ele tinha pelo Botafogo de Futebol e Regatas. Aconteceu então de ele conhecer a história do cachorro Biriba, que havia sido adotado pelo folclórico presidente alvinegro Carlito Rocha, e que dizia-se ter dado muita sorte pro clube na época. Como o time ia mal das pernas naqueles tempos, meu pai resolveu fazer sua própria aposta, como todo bom botafoguense supersticioso: pegou um pinscher zero (o menorzinho que encontrou, para evitar maiores bagunças), deu o nome de Biriba e esperou pra ver no que ia dar. 

Completamente indiferente aos motivos de meu pai (muito embora eu também seja botafoguense), pra mim o que importava era que agora tínhamos um cachorro, e isso era um sonho realizado. Estava mais feliz do que nunca e vivia a mimar o Biriba, que naquelas primeiras semanas andava torto e desajeitado, de vez em quando topando contra as paredes, causando-nos êxtases de fofura.

Biriba cresceu (não muito, obviamente) e tomou o rosto de um cão confiante. Andava marchando e latia a qualquer ruído, convencido que era de ser o guardião da casa. Adorava correr, sobretudo atrás dos passarinhos, numa busca inalcançável. Dormia na sala, mas me acordava todos os dias, arranhando incessantemente a porta do quarto até que eu me dignasse abri-la, e então voltávamos a dormir juntos. Em dias de maior coragem, saíamos para passear ou ficávamos brincando no quintal de casa mesmo. Eu gostava especialmente de beliscar o Biriba, pois ele respondia com um rosnado e um olhar tão furioso que eu achava a maior graça. E dava um dó tão grande quando saíamos de casa deixando-o sozinho, pois até o último momento ele ficava nos olhando com uma carinha triste, suplicando silenciosamente que não fizéssemos aquilo...

Com o passar dos anos, Biriba já tinha conquistado até o meu pai, muito embora o Botafogo continuasse terrivelmente mal. Meus primos pequenos e meus amigos adoravam-no e eram frequentes visitas na nossa casa exclusivamente para ele. Por essa época, percebemos a necessidade de arranjá-lo uma namorada, pois estava a fazer amor loucamente e o tempo inteiro com um ursinho de pelúcia. Foi então que encontramos uma pretendente a duas ruas de nossa casa: chamava-se Belinha, uma pinscher escura e maior que o Biriba. Deixamos ele na casa dela e desde cedo os dois se deram muito bem, envolvendo-se com uma paixão arrebatadora.

Biriba ficou por lá pouquíssimo tempo, algo como dois dias. Quando retornou, contudo, já não era mais o mesmo: estava completamente apaixonado. Não dava mais a menor bola para o ursinho de pelúcia nem corria atrás dos passarinhos. Suas preocupações passaram a consistir basicamente em ficar sempre atento a um descuido de nossa parte com o portão da casa para fugir apressadamente. E quando isso acontecia, já sabíamos onde encontrá-lo: em frente a casa da Belinha, namorando por entre as grades, trocando beijinhos de esquimó. 

Foi então que um dia calhou de acontecer: era noite e minha mãe chegava da faculdade. Ela abriu o portão e nem eu nem meu pai estávamos prestando atenção no Biriba, que naturalmente aproveitou para fugir. Mas dessa vez o cachorro da vizinha da frente estava solto, um vira-lata mal encarado que inclusive chegou a me atacar certa vez. Não vi a cena, mas minha mãe conta que ele deu uma única mordida no Biriba, que sequer latiu. Desesperados, levamos ele correndo para um veterinário, mas já não tinha jeito: uma hemorragia interna havia consumido meu primeiro e tão amado cachorrinho.

Voltamos para casa, todos chorando copiosamente. Limpamos o Biriba e deixamos ele em sua caminha. Fui deitar e não consegui dormir, atormentado pelo acontecimento. Biriba, que era tão valente, morreu em silêncio. Tinha a cabeça em outro lugar, estava tomado pelo amor. E nós o segurávamos, por isso ele precisava fugir. Será que ele morreu chateado conosco, que prezávamos mais a nossa propriedade sobre ele do que seus próprios sentimentos?

Não sei, não sei... O que sei é que quando precisei levantar e ir para a escola no dia seguinte, passei pelo Biriba em sua caminha e ele parecia estar simplesmente dormindo. E que logo acordaria e iria arranhar minha porta. E rosnar aos meus beliscões. E correr atrás dos passarinhos. Não pude evitar de chorar novamente.

Depois da aula, pela tarde, fizemos o enterro do Biriba. Eu acompanhei tudo e o atestado de meus olhos é que hoje ele repousa num terreno na parte de trás da loja, enrolado numa bandeira do Botafogo. Mas prefiro acreditar sinceramente que agora ele é uma estrela solitária lá no céu, que nos conduz.

Gabriel Coelho

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