Se posso dizer que conheci Raquel, foi só por um
momento. Não sei se chegou a completar um minuto sequer, talvez tenha sido só
alguns segundos. De toda forma, a única certeza que tenho é de que essa curta lembrança
ecoará em minha memória para sempre.
Quando pude conviver com ela pela primeira e única
vez, eu tinha algo entre 10 ou 12 anos e estava passando férias em Brasília com
a família do meu pai. Nossa capital é uma boa cidade, mas não muito atrativa,
sobretudo para crianças. Por isso, meus queridos tios Nino e Eugênia resolveram
levar eu e os seus filhos, meus primos André – que tem minha idade – e a
pequena Júlia – que hoje já está do meu tamanho – para curtir um pouco as águas
termais de Caldas Novas, em Goiás, ali pertinho.
Não lembro absolutamente da pacata cidade goiana. A
impressão que tenho é de que nunca passei por lá, pois não consigo vislumbrar
na memória nem um pouco que seja das suas ruas, sua paisagem, seus monumentos,
nada. Em compensação, acho que também nunca irei me esquecer do hotel em que
ficamos hospedados, o Hotel Taiyo.
Vindo de Boa Vista, onde até hoje praticamente não
se há prédios, os hotéis em geral me causavam um verdadeiro deslumbramento. E o
Taiyo era ainda mais: ele era o hotel mais incrível que eu já tinha conhecido.
Lá tinha de tudo. Piscinas termais, ofurô, sala de jogos com fliperamas pra
jogar à vontade, campos de futebol, quadras de tênis, tudo! Ainda assim, ele
contava com apenas quatro estrelas, e isso me deixava verdadeiramente
indignado, porque eu não conseguia conceber como os famigerados "cinco
estrelas" poderiam ser melhores do que aquilo.
De todo modo, o que mais gostei no hotel foi ainda
algo diferente dessa estrutura física que tanto me impressionava. O diferencial
mesmo, e que fez aquele passeio em Caldas Novas valer a pena, era a especial
atenção que eles dedicavam às crianças. Todos os dias, um grupo de funcionários
do hotel ficava encarregado de promover as mais diversas brincadeiras entre a
criançada que estava hospedada por lá – eram os "tios", como
gostávamos de chamar. Pois era impressionante o número de crianças que estavam
hospedadas e como todas elas participavam das brincadeiras, inclusive eu e meus
primos, claro. Jogávamos futebol, polo aquático, basquete, queimada, barra
bandeira, enfim, era o dia inteiro de interação e diversão, até o fim da tarde,
quando os tios encerravam as atividades.
Foi no meio dessas brincadeiras que vi Raquel pela
primeira vez. Já não consigo distinguir seu rosto com muita precisão, mas
lembro bem que era loira e muito branca; que era paulista de sotaque carregado
(eu achava um charme) e muito esforçada nas brincadeiras. Infelizmente, não
tínhamos tanto contato assim, pois muitos jogos eram só de meninos ou só de
meninas, então participamos apenas de algumas brincadeiras juntos, sem muita
aproximação.
Ela mexia comigo. Eu sentia fisgadas no coração
quando aconteciam essas brincadeiras em que estávamos os dois juntos. Aí me
acometia essa estranha contradição que acredito seja comum entre crianças
tímidas: eu queria muito ficar perto dela, chegar junto, mas fazia de tudo para
me afastar. Por exemplo, se nós fôssemos jogar barra bandeira em times opostos,
eu não a marcaria e nem tentaria atravessar o campo em cima dela,
na esperança de ensejar um encontro. Era engraçado: o frio na barriga ia aos
poucos me levando para o lado contrário ao que ela estivesse, muito embora eu
não tirasse o olho dela nem um segundo.
Até que um dia me superei. Era bastante
comum que boa parte das crianças continuasse brincando de outras coisas mesmo
após o fim das atividades preparadas pelo hotel, até tarde da noite. Como eu e
meu primo André ficamos com um quarto só para nós, aproveitamos a liberdade e
não perdemos nenhuma dessas brincadeiras noturnas. Numa dessas, resolvemos
brincar de manja pega, e no sorteio inicial ficou estabelecido que a Raquel
seria a manja.
Pensei logo: "Vou deixar ela me pegar".
E, de fato, muito provavelmente enquanto ela estava naquela estranha contagem
da dezena de trinta (T1, T2, T3...), me escondi num lugar bem fácil, atrás de
uma pilastra não muito longe do posto da manja.
Ela terminou de contar e veio exatamente na minha
direção. Passou a pilastra e, experiente na brincadeira, olhou para trás para ver
se não tinha alguém escondido. Lá estava eu. Eu até já poderia ter corrido no
pequeno espaço de tempo entre quando ela passou a pilastra e se virou para me
olhar, mas eu fiquei parado e só comecei a correr – tranquilamente – depois que
ela me viu. Estávamos a meio caminho do posto da manja quando ela me pegou.
Paramos de correr. Ela tinha então que me levar pra ficar "preso" no
posto da manja e foi aí que, para a minha surpresa, ela resolveu me levar de
mãos dadas.
Tínhamos uma distância curtíssima a percorrer.
Ainda assim, foi tempo suficiente para, passada a surpresa inicial, ficar
maravilhado com a sensação de andar de mãos dadas com a Raquel. Também deu
tempo dela falar, já na beira do nosso destino, que "de mãos dadas é
estranho, né?", e largar da minha mão. Eu concordei e olhei imediatamente
pra baixo, para então ficar preso enquanto ela corria apressadamente em busca
das outras crianças.
Nunca esqueci e tenho certeza de que nunca me
esquecerei disso. É uma besteira, mas também uma verdade: amei Raquel. Um amor,
é claro, bastante peculiar, mas creio que seja justamente esse o amor
verdadeiro.
Tenho o amor para mim como o inexplicável. Como
pode um caminhar de mãos dadas por alguns segundos se tornar inesquecível? Só o
amor. O amor é a supervalorização de momentos aparentemente insignificantes.
Amar é engrandecer o trivial. Um sopro de amor e aquilo que seria uma
banalidade passa a ser a lembrança mais acalentadora, a base de um
relacionamento, o propósito de uma vida.
E dessa perspectiva, o amor é algo íntimo, pessoal,
não sendo necessário mais ninguém além da própria pessoa para que ele se
perfaça. Como o amor antigo de Drummond, ele "vive de si mesmo, não de
cultivo alheio ou de presença". E por isso é que o amor que eu pude
experimentar quando andei de mãos dadas com Raquel persiste, ainda que eu não
consiga mais lembrar tão bem do seu rosto, ou que eu não tenha a menor
possibilidade de encontrá-la novamente nessa vida, ou que ela nem suspeite mais
da minha existência.
Então o amor é algo muito simples, não? Sim,
justamente como deve ser. Não acontece toda hora, tampouco é algo que só se
manifeste uma vez na vida. Carrego o amor de Raquel como uma lembrança, já
experimentei outros amores e espero um dia me juntar aos afortunados que
acordam ao lado do amor em pessoa. Até lá, quanto mais amor melhor!
Gabriel Coelho