sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Eu, Raquel e uma teoria do amor

Se posso dizer que conheci Raquel, foi só por um momento. Não sei se chegou a completar um minuto sequer, talvez tenha sido só alguns segundos. De toda forma, a única certeza que tenho é de que essa curta lembrança ecoará em minha memória para sempre.

Quando pude conviver com ela pela primeira e única vez, eu tinha algo entre 10 ou 12 anos e estava passando férias em Brasília com a família do meu pai. Nossa capital é uma boa cidade, mas não muito atrativa, sobretudo para crianças. Por isso, meus queridos tios Nino e Eugênia resolveram levar eu e os seus filhos, meus primos André – que tem minha idade – e a pequena Júlia – que hoje já está do meu tamanho – para curtir um pouco as águas termais de Caldas Novas, em Goiás, ali pertinho.

Não lembro absolutamente da pacata cidade goiana. A impressão que tenho é de que nunca passei por lá, pois não consigo vislumbrar na memória nem um pouco que seja das suas ruas, sua paisagem, seus monumentos, nada. Em compensação, acho que também nunca irei me esquecer do hotel em que ficamos hospedados, o Hotel Taiyo.

Vindo de Boa Vista, onde até hoje praticamente não se há prédios, os hotéis em geral me causavam um verdadeiro deslumbramento. E o Taiyo era ainda mais: ele era o hotel mais incrível que eu já tinha conhecido. Lá tinha de tudo. Piscinas termais, ofurô, sala de jogos com fliperamas pra jogar à vontade, campos de futebol, quadras de tênis, tudo! Ainda assim, ele contava com apenas quatro estrelas, e isso me deixava verdadeiramente indignado, porque eu não conseguia conceber como os famigerados "cinco estrelas" poderiam ser melhores do que aquilo.

De todo modo, o que mais gostei no hotel foi ainda algo diferente dessa estrutura física que tanto me impressionava. O diferencial mesmo, e que fez aquele passeio em Caldas Novas valer a pena, era a especial atenção que eles dedicavam às crianças. Todos os dias, um grupo de funcionários do hotel ficava encarregado de promover as mais diversas brincadeiras entre a criançada que estava hospedada por lá – eram os "tios", como gostávamos de chamar. Pois era impressionante o número de crianças que estavam hospedadas e como todas elas participavam das brincadeiras, inclusive eu e meus primos, claro. Jogávamos futebol, polo aquático, basquete, queimada, barra bandeira, enfim, era o dia inteiro de interação e diversão, até o fim da tarde, quando os tios encerravam as atividades.

Foi no meio dessas brincadeiras que vi Raquel pela primeira vez. Já não consigo distinguir seu rosto com muita precisão, mas lembro bem que era loira e muito branca; que era paulista de sotaque carregado (eu achava um charme) e muito esforçada nas brincadeiras. Infelizmente, não tínhamos tanto contato assim, pois muitos jogos eram só de meninos ou só de meninas, então participamos apenas de algumas brincadeiras juntos, sem muita aproximação.

Ela mexia comigo. Eu sentia fisgadas no coração quando aconteciam essas brincadeiras em que estávamos os dois juntos. Aí me acometia essa estranha contradição que acredito seja comum entre crianças tímidas: eu queria muito ficar perto dela, chegar junto, mas fazia de tudo para me afastar. Por exemplo, se nós fôssemos jogar barra bandeira em times opostos, eu não a marcaria e nem tentaria atravessar o campo em cima dela, na esperança de ensejar um encontro. Era engraçado: o frio na barriga ia aos poucos me levando para o lado contrário ao que ela estivesse, muito embora eu não tirasse o olho dela nem um segundo.

Até que um dia me superei. Era bastante comum que boa parte das crianças continuasse brincando de outras coisas mesmo após o fim das atividades preparadas pelo hotel, até tarde da noite. Como eu e meu primo André ficamos com um quarto só para nós, aproveitamos a liberdade e não perdemos nenhuma dessas brincadeiras noturnas. Numa dessas, resolvemos brincar de manja pega, e no sorteio inicial ficou estabelecido que a Raquel seria a manja.

Pensei logo: "Vou deixar ela me pegar". E, de fato, muito provavelmente enquanto ela estava naquela estranha contagem da dezena de trinta (T1, T2, T3...), me escondi num lugar bem fácil, atrás de uma pilastra não muito longe do posto da manja.

Ela terminou de contar e veio exatamente na minha direção. Passou a pilastra e, experiente na brincadeira, olhou para trás para ver se não tinha alguém escondido. Lá estava eu. Eu até já poderia ter corrido no pequeno espaço de tempo entre quando ela passou a pilastra e se virou para me olhar, mas eu fiquei parado e só comecei a correr – tranquilamente – depois que ela me viu. Estávamos a meio caminho do posto da manja quando ela me pegou. Paramos de correr. Ela tinha então que me levar pra ficar "preso" no posto da manja e foi aí que, para a minha surpresa, ela resolveu me levar de mãos dadas.

Tínhamos uma distância curtíssima a percorrer. Ainda assim, foi tempo suficiente para, passada a surpresa inicial, ficar maravilhado com a sensação de andar de mãos dadas com a Raquel. Também deu tempo dela falar, já na beira do nosso destino, que "de mãos dadas é estranho, né?", e largar da minha mão. Eu concordei e olhei imediatamente pra baixo, para então ficar preso enquanto ela corria apressadamente em busca das outras crianças.

Nunca esqueci e tenho certeza de que nunca me esquecerei disso. É uma besteira, mas também uma verdade: amei Raquel. Um amor, é claro, bastante peculiar, mas creio que seja justamente esse o amor verdadeiro.

Tenho o amor para mim como o inexplicável. Como pode um caminhar de mãos dadas por alguns segundos se tornar inesquecível? Só o amor. O amor é a supervalorização de momentos aparentemente insignificantes. Amar é engrandecer o trivial. Um sopro de amor e aquilo que seria uma banalidade passa a ser a lembrança mais acalentadora, a base de um relacionamento, o propósito de uma vida.

E dessa perspectiva, o amor é algo íntimo, pessoal, não sendo necessário mais ninguém além da própria pessoa para que ele se perfaça. Como o amor antigo de Drummond, ele "vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de presença". E por isso é que o amor que eu pude experimentar quando andei de mãos dadas com Raquel persiste, ainda que eu não consiga mais lembrar tão bem do seu rosto, ou que eu não tenha a menor possibilidade de encontrá-la novamente nessa vida, ou que ela nem suspeite mais da minha existência.

Então o amor é algo muito simples, não? Sim, justamente como deve ser. Não acontece toda hora, tampouco é algo que só se manifeste uma vez na vida. Carrego o amor de Raquel como uma lembrança, já experimentei outros amores e espero um dia me juntar aos afortunados que acordam ao lado do amor em pessoa. Até lá, quanto mais amor melhor!


Gabriel Coelho

domingo, 30 de março de 2014

Anoitecer

Anoitecer



Meu corpo, submerso na escuridão da noite
Anseia em melancólico movimento torpe,
Deseja no íntimo de sua egoísta orbe,
A fugacidade do solipsista açoite

Minh’alma, escura como o breu noturno
Geme sua desgraça ao universo sombrio
Berra seu infortúnio enquanto anseio
A reviravolta onírica, a redenção de Saturno

Aguarda o fim de tão desgraçada chaga
Da solidão numênica que o corpo traga,
À aversão voraz à tese camusiana

E enfim se encena a volúpia eterna,
Que em último ato a realidade encerra,
Deleita a pútrida alma mundana


Aranha Ribeiro




terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A opressão das massas

Ao contrário do que possa parecer pelo título,
esse texto não é um ensaio marxista.

É, na realidade, apenas uma bobagem que pensei divagação.

Vim passar uns dias em São Paulo e me hospedei na casa de meu tio, um apartamento muito do seu bem localizado, logo atrás do MASP, a cem metros da famigerada Avenida Paulista. Da janela da sala de estar, onde estou agora, posso ver vários prédios, mas não posso contá-los. Perco a conta, são prédios demais.

E é gente demais também. No metrô, ontem, demorei uma hora para fazer um trajeto simples, de poucas estações. Imagina na Copa só, havia tanta gente que só pude entrar num vagão depois de 4 ou 5 trens passarem. Na vinte e cinco de março, a mesma coisa: gente que não acabava mais, e dois tipos de pessoas (vamos dividi-las assim, em dois grandes grupos, na vinte e cinco de março) interagiam de um jeito curioso: vendedores berravam, gritavam, bradavam, uivavam, clamavam, anunciavam, urravam, rugiam, exclamavam seus produtos; e transeuntes ignoravam, desprezavam, evitavam, desconsideravam, desmereciam, desatendiam, cagavam para os berros, gritos, brados, uivos, conclames, anúncios, urros e rugidos dos vendedores.

É um efeito dessa quantidade toda de gente. E de prédio. E de barulho. De tudo.

Me considero um bom fisionomista; não se ofenda, se você, que está lendo, eventualmente se encontrou comigo e eu não lembrei quem você era. Acontece, oras. Mas, no geral, acho que sou um bom fisionomista, certamente algum ranço genético de meu pai, que sabe a cara de todo mundo (além dos sobrenomes, procedência e história pessoal).

Consigo guardar rostos com uma certa facilidade. Lembro muito bem, por exemplo, o rosto da operadora de caixa da Panificadora Elisa, em Manaus. Uma senhora morena, que usa o cabelo preso em coque e é extremamente simpática com todos. No entanto, não ideia, nem mesmo a mínima, de como se parece a operadora de caixa da padaria onde tomei café da manhã hoje; e nem o garçom. Não poderia descrevê-los nem superficialmente, se gordos ou magros, carecas ou cabeludos etc.

Deve fazer parte da dinâmica de grandes cidades isso. De cidades enormes. Imagino que Tóquio deva ser mais ou menos assim também. Aliás, Tóquio deve ser bem pior, porque todos os habitantes são iguais. Nova Iorque, vá lá, um exemplo melhor. Em NY as pessoas não gritam - tirando em Chinatown - os seus produtos, mas o passante ignora o mundo tal qual, com seus fones e ouvido e telefones celulares. Não se cria vínculo, não se decora rosto, não se pergunta nome. É claro que essas são coisas cada vez mais difícil - criar um vínculo, evento oldschool mesmo - mas acho que nas grandes cidades acontece mais.

Talvez seja um efeito da opressão das massas. Massas de pessoas, carros, prédios, papéis, produtos, horários, bares, possibilidades. As possibilidades também oprimem. Às vezes fico feliz em não ter opção, porque aí não terei que conviver com uma escolha ruim que eu porventura tomar.

Sempre penso nas histórias das pessoas, quando vou a uma dessas cidades. Pensei muito quando fui a Nova Iorque, penso sempre quando venho a São Paulo, já pensei a mesma coisa no Rio, em Marraquexe, em Barcelona (não em Madrid, curiosamente. Não que não seja o caso de pensar, mas é que não pensei nisso quando estive lá. Passei com pressa).

É que as pessoas têm histórias, até mesmo interessantes, e sobre as quais não refletimos nada, porque existem pessoas demais ao nosso redor, e sempre estamos mais interessados em nós mesmos ou nas pessoas com quem estamos. É preciso quebrar essa corrente às vezes, a que nos prende a nós mesmos.

Fui sozinho a Barcelona. Já morava na Europa há uns quatro meses e via o tempo passar sem cartões postais e lembranças de viagens se somassem à minha vida. Via as fotos de outras pessoas que moravam na Europa e pensava que os seis meses que eu ia passar lá não estavam sendo tão bem aproveitados, já que eu não viajava tanto. Me faltava companhia para viajar. Fiz um grande amigo carioca e mochilamos por quinze dias pela Europa Central, foi ótimo; mas ele já tinha ido a algumas cidades que eu queria conhecer (tipo Barcelona), ou então as nossas agendas na faculdade não batiam, e ele não pode fazer nenhuma outra viagem comigo. E aí eu decidi começar viajar sozinho. Era isso ou ficar em casa. E ficar em casa não era uma opção, principalmente quando uma passagem de avião custa dez euros.

Foi um pouco deprimente, ter que pedir para uma pessoa aleatória tirar uma foto sua no momento x ou na igreja y, já que nem uma alma te acompanha na sua solitária viagem. Ou fazer selfie nos lugares. Ou não saber o que fazer à noite. E jantar sozinho. Mas era isso ou ficar em casa, e eu descobri que viajar sozinho não era tão ruim, por vários motivos: você começa a refletir muito sobre as coisas, sobre as histórias das pessoas (era onde eu queria chegar), além de aprender a conhecer gente nova, escutar gente nova, a se divertir sozinho, a se bastar, a ousar ir para uma boate do outro lado da cidade com caminhoneiros irlandeses que você conheceu no seu quarto do albergue. Você não faz isso quando viaja com alguém. Tem que pensar no outro, fazer um horário, demorar mais num museu chato, demorar menos num bar legal. Enfim.

Na frente do meu albergue tinha esse bar interessante, com uma bartender linda. Linda mesmo, tão linda que eu acabei indo no bar uns três dias seguidos, só para poder ficar olhando e batendo papo com ela. No último dia ela até me deu (clandestinamente) até um copo do bar, uma taça da cerveja catalã Estrella Damm, que é uma delícia. Depois quebrou (deixei no escorredor de louça que ficava em cima da geladeira, que ficava encostada na máquina de lavar, que tremeu demais durante um ciclo de lavar calça jeans e fez tremer a geladeira, que fez tremer o escorredor de louça, de onde caiu o copo).

Não lembro o nome dela, mas vamos chamá-la de Maia, que é um nome tipicamente catalão. A Maia tinha 25 anos e trabalhava todos os dias como bartender, mas era formada em psicologia e estava terminando o mestrado. Queria trabalhar na área, mas não tinha muita expectativa de sair do bar. Foi nesse momento que eu comecei a entender um pouco a situação pela qual passava a Europa (e ainda passa). Conversar com Maia me fez entender um contexto socioeconômico melhor do que ler um jornal. Bom, e a Maia morava com o namorado, um brasileiro de Salvador. Ela sabia falar "soteropolitano". Ele era músico, eu acho, e ela também tocava violão e cantava. Acho que cantava, já não tenho certeza. Moça simpática - e linda. E com uma história, que poderia ter passado despercebida diante da opressão das "massas". Ainda bem que não passou.

Paulo Lindoso 


terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Livros "al dente" (uma divagação)

Dias desses estava ouvindo despretensiosamente uma rádio, quando um clássico dos anos 80 começou a tocar. Notei que a linha de bateria era marcada por constantes batidas num prato com som estridente, forte e alto... E lembrei seu nome: "china", pronunciado em inglês, tipo "chaina". Lembrei-me do "chaina" porque já tive uma banda de rock, e o "china" era um aparato essencial para qualquer baterista que fosse tocar conosco. Prato grande, com formato esquisito e som marcante... E aí, embalado por "Your Love", do The Outfields, passei a pensar sobre esses conceitos que apreendemos durante fases da vida e que, sem que percebamos, passam a fazer parte do nosso cotidiano.

Na faculdade de Direito, por exemplo, acontece muito. No início do curso (e também, para mim e para alguns colegas, no início da vida adulta, logo aos 18 anos), algumas definições nos escapavam. Sabe aquelas coisas que você sabe o que são, mas não consegue explicar? Pois é. E assim vi transcorrerem cerca de dois anos de ensino jurídico. Hoje, se converso com algum colega da mesma área, o juridiquês vem a cavalo preencher qualquer lacuna conceitual que haja no meu vocabulário. De repente, uma relação amorosa complicada passa a ser "sui generis", uma sinuca-de-bico vira "inexigibilidade de conduta diversa", uma briga com a namorada se transforma em "procedimento inquisitório" e, ainda que o discurso de torne estrogonófico e rocambolesco, como são os discursos jurídicos, a gente se entende.

Falando em estrogonofe e rocambole, passei a cozinhar recentemente. Minto, passei a cozinhar há mais ou menos dois anos, quando fui passar seis meses na cidade do Porto sem haver quem fritasse meus bifes e cozesse meu macarrão; digo que passei a cozinhar recentemente porque, mesmo durante todos esses meses no Porto, embora tivesse me aventurado diariamente na cozinha, não raro eu fazia apenas batatas assadas no microondas e as comia com sal e molho Heinz para saladas, ou então comprava uma comida pronta e a temperava com meus temperinhos prediletos: manjericão, salsa, alho desidratado, orégano etc. Recentemente é que passei a me arriscar um pouco mais na cozinha, e também a arriscar a integridade física daqueles que provam da minha gastronomia. Liste-se aí um arroz à piamontese com gosto de vinagre, um filé ao molho de mostarda frio e um tagliatelle com camarões com gosto de limão.

Bom, mas estávamos nos conceitos. E também em como, às vezes, os conceitos apreendidos ao longo da vida nos servem sem que possamos notar: como a utilizar o jargão jurídico na definição de coisas corriqueiras, ou lembrar o nome do prato da bateria que reproduz o som estridente de uma música dos anos 80. E falei de comida. Falei de comida porque a culinária, também ela, possui incontáveis expressões interessantes para a vida.

Veja aí, por exemplo, "sal a gosto". Conheço uma pessoa que detesta essa expressão, e diz categoricamente: "se eu soubesse cozinhar, não estaria lendo a receita; já que não sei e que estou lendo a receita, quero que me digam a exata quantidade de sal a colocar". Enfrento o mesmo problema toda vez que me ponho diante do fogão, mas minha saída é mais elegante: me abstenho de colocar qualquer sal (muitas vezes por esquecimento) e digo aos convidados que, na Itália, o costume é de que o sal fique à mesa e que cada um salgue seu prato conforme achar mais conveniente. Nunca acreditam - mas meu objetivo de vida, além do sucesso profissional e da felicidade afetiva, é fazer com que essa desculpa "cole" um dia.

Nessa divagação, surpreendi-me pensando na expressão "al dente". "Al dente", em minha tradução livre do italiano, língua em que sou versado, significa: ao dente. Refere-se ao ponto de cozimento das massas, e quer dizer que a massa "al dente" está em um ponto no qual é firme, mas não dura; no qual tem maciez, mas ainda oferece certa resistência "ao dente". No bom caboquês, quer dizer: "no grau". Para a gastronomia tradicional, "al dente" é o ponto perfeito para uma massa. Concordo, já que, pela própria experiência de ter servido macarrões duros demais ou molengos demais, sei que estes estados estão distantes da perfeição.

 "Al dente" quer dizer, então, "ponto ideal". Não pude deixar de pensar que às vezes alguns livros não estão "al dente" para nossa mastigação e deglutição, e precisam ferver um pouco mais no caldeirão das nossas experiências e conhecimentos, para que possam, enfim, serem "postos" para dentro de nós. Pior: às vezes tentamos "comer" um ótimo livro que não está "al dente" e, muito embora seja um ótimo livro, acabamos por ter uma péssima experiência literária.

Imagine só que um amigo seu vá para a Itália e traga de lá um pacote de massa artesanal deliciosíssima, que ele comprou de um pequeno produtor rural no interior da Sicília. Você, sabendo que eu tenho uma paixão por massas e vinhos, me entrega esse tesouro e me pede para prepará-lo. Eu, com toda a sabedoria que recolhi ao longo de anos, esqueço a massa no fogo enquanto me atrapalho ao tentar abrir o vinho, e ela passa do ponto. Sem dúvida que deveria ser saborosíssima, mas eu arruinei sua textura. Não será mais tão saborosa.

Assim são alguns livros - embora não precisem de um cozinheiro incompetente para lhes estragar a textura. Basta que o leitor não o tenha fervido por tempo suficiente com suas experiências, e o livro pode acabar por não ser tão bom quanto na verdade é.

Li "O Mundo de Sofia", de Jostein Gaarder, há muitos anos - e não o terminei. Meu irmão, um tanto antes, havia lido até o fim. O livro, a grossíssimo modo, traz a história de uma menina que passa a ter contato com a Filosofia, e, entre os relatos dela, uma dezena de lições filosóficas é colocada em pauta. Anos depois, meu irmão me confessou que havia lido o livro inteiro, mas que tinha pulado as lições filosóficas. Ora!, eu lhe disse, então não leu coisa nenhuma, e, se tiver lido, eu também li. Porque eu havia empacado justamente nas lições filosóficas, que me eram demasiadamente pesadas.

Estraguei, portanto, uma belíssima obra, por não tê-la devorado "al dente", por não ter esperado que ela amolecesse mais ao fervor de minhas experiências e meus conhecimentos.

Outros anos se passaram, e eu passei a trabalhar no Tribunal de Justiça, como estagiário de um magistrado que gostava muitíssimo de ler. Entre sentenças e decisões, comentei algo com ele de algum livro e passamos a conversar sobre literatura. Falei, não lembro por qual motivo, de "O Cemitério de Praga", então última obra lançada por Umberto Eco, e ele me indagou se eu já tinha lido "O Nome da Rosa", seu livro mais proeminente. E eu lhe disse que não: no dia seguinte, lá estava ele com o livro à mão, dizendo-me que eu deveria tomá-lo emprestado para ler.

Adianto um pouco minhas dúvidas: não sei se eu realmente "estraguei" o livro; se o livro foi estragado, por outro lado, não sei se quem o fez fui eu ou se foi meu chefe. Explico. Eu estava há pouco tempo naquele estágio, e não podia sobremaneira deixar de ler, primeiro porque assim desapontaria meu chefe, e segundo porque eu não saberia devolver o livro sem que tivesse lido e nem poderia ficar eternamente com o livro. Noutro passo, sentia que o livro era uma oportunidade de mostrar serviço, tanto quanto eram as atividades que eu lá desenvolvia, profissionalmente. Acabei lendo-o num tapa.

Evidentemente, lembro a história. Lembro-me até de alguns detalhes, o que é incomum para minha débil memória. Mas, conhecendo Umberto Eco e sabendo de toda a profundidade de sua magnum opus, terminei aquele livro desejando que o tivesse lido anos mais tarde, quanto eu talvez tivesse mais maturidade para compreender as questões filosóficas e históricas nele trazidas. Fechar o livro, ao seu término, me trouxe a alegria da tarefa finda e a tristeza da ignorância. Pior: sem qualquer recompensa.

Eu não esperava, de fato, uma recompensa por ter lido o livro, obviamente. Mas, ao retorná-lo, meu chefe se limitou a dizer "ótimo livro, ein? Gostou?", ao que prontamente respondi que sim e a conversa se encerrara. Tínhamos longas conversas sobre o Direito e a vida, e eu esperava ser de certa forma inquirido sobre o tema do livro, mas nem isso. Na semana seguinte, acabei emprestando-lhe "O Cemitério de Praga", livro que outrora fora pivô de um desentendimento com uma namorada; para minha surpresa, e também para os risos irônicos do destino, até hoje não me foi devolvido o livro. (Se bem que, até pouco tempo, por vezes ouvia do meritíssimo que estava lendo o livro, e que o seu curto tempo livre impedia que terminasse logo).

Fico pensando, de certo modo cabisbaixo, sobre todos os livros que já li e quantos deles foram deglutidos fora do ponto, sem que estivessem "al dente"; e também em quantos livros se empoeiram em minha estante, aguardando pacientemente até que a fervura da minha consciência os considere preparados... Aí se empilham "O Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterdã; "Fundamentos de Filosofia", de García Morente; "A Cidade Antiga", de Fustel de Coulanges, entre tantos outros.

Todos estas obras e livros
Jovens, velhos, novos e antigos
Um dia ficarão al dente?
Para serem consumidos
Por minha inquieta mente?

Paulo Lindoso

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Biriba

Olhando para trás agora, posso dizer seguramente que tive uma infância feliz. Mas naquela época, por volta dos meus onze anos, eu carregava uma frustração que me parecia insuperável: o fato de não ter um cachorro. Era especialmente doloroso porque as circunstâncias em que vivíamos praticamente pediam para que tivéssemos um: morávamos em uma casa grande e espaçosa, dispúnhamos de tempo e - pior de tudo - éramos donos de uma loja de produtos agropecuários, que entre outras coisas vendia inúmeros acessórios, medicamentos e rações para cães.

Nada obstante, e contra toda lógica, o meu pai (proprietário da loja) simplesmente não suportava cachorros. Aos meus insistentes pedidos para que adotássemos um cãozinho ele tinha sempre a mesma resposta: que eles não "serviam" para nada, a não ser para fazer sujeira e quebrar tudo, e que isso estava completamente fora de cogitação. E de nada importavam os argumentos sólidos e objetivos que vez ou outra eu encontrava e que  depunham a favor de se ter um cachorro em casa, meu pai era firme no seu lema: cachorro não, fora de cogitação.

E assim eu ficava a escutar amargurado o latido alegre dos cachorros dos vizinhos quando eles chegavam em casa; invejava os que desfilavam com as mais variadas raças caminhando pelas ruas da cidade; vivia enfim verdadeiramente desolado, pois o mundo inteiro tinha um cachorro e eu não vislumbrava sequer a esperança de ter um tão cedo.

Eis que um dia, durante uma viagem de férias, recebi a ligação de minha mãe trazendo a seguinte notícia: "Quando você chegar em casa, vai ter uma surpresa!", e surpresa boa, ela fez questão de acrescentar. Imaginei logo que tinha ganhado um videogame novo, talvez um computador ou quem sabe um jogo que eu ainda não conhecia  - eram minhas melhores expectativas e qualquer delas me deixaria muito feliz. Mas quando ela me buscou no aeroporto, adicionou um detalhe que desmistificou tudo que fosse material: "Seu pai pediu para avisar que a surpresa vai ser um botafoguense fanático!". E agora? Mamãe estaria grávida? Algum primo iria morar conosco? Minha mente estava inquieta no caminho para casa, especulando milhares de novas possibilidades até então impensadas.

Quando enfim chegamos, pulei para fora do carro e corri para abrir a porta. Nada de diferente. Como eu esperava que a tal surpresa se apresentasse logo de cara para mim, meu rosto foi logo tomando feições de decepção. Mas minha mãe veio logo atrás e me  apontou: "Ali, Gabriel!". No canto da sala, uma pequena almofada azul. Em cima dela, uma bolinha marrom menor ainda. Um filhote, um filhote diminuto. Acho que nunca tinha visto coisa mais frágil, e olhava sem acreditar. Temos um cachorro, é isso?

Então fiquei sabendo como chegamos a esse ponto: maior que a aversão de meu pai pelos cachorros, só o amor que ele tinha pelo Botafogo de Futebol e Regatas. Aconteceu então de ele conhecer a história do cachorro Biriba, que havia sido adotado pelo folclórico presidente alvinegro Carlito Rocha, e que dizia-se ter dado muita sorte pro clube na época. Como o time ia mal das pernas naqueles tempos, meu pai resolveu fazer sua própria aposta, como todo bom botafoguense supersticioso: pegou um pinscher zero (o menorzinho que encontrou, para evitar maiores bagunças), deu o nome de Biriba e esperou pra ver no que ia dar. 

Completamente indiferente aos motivos de meu pai (muito embora eu também seja botafoguense), pra mim o que importava era que agora tínhamos um cachorro, e isso era um sonho realizado. Estava mais feliz do que nunca e vivia a mimar o Biriba, que naquelas primeiras semanas andava torto e desajeitado, de vez em quando topando contra as paredes, causando-nos êxtases de fofura.

Biriba cresceu (não muito, obviamente) e tomou o rosto de um cão confiante. Andava marchando e latia a qualquer ruído, convencido que era de ser o guardião da casa. Adorava correr, sobretudo atrás dos passarinhos, numa busca inalcançável. Dormia na sala, mas me acordava todos os dias, arranhando incessantemente a porta do quarto até que eu me dignasse abri-la, e então voltávamos a dormir juntos. Em dias de maior coragem, saíamos para passear ou ficávamos brincando no quintal de casa mesmo. Eu gostava especialmente de beliscar o Biriba, pois ele respondia com um rosnado e um olhar tão furioso que eu achava a maior graça. E dava um dó tão grande quando saíamos de casa deixando-o sozinho, pois até o último momento ele ficava nos olhando com uma carinha triste, suplicando silenciosamente que não fizéssemos aquilo...

Com o passar dos anos, Biriba já tinha conquistado até o meu pai, muito embora o Botafogo continuasse terrivelmente mal. Meus primos pequenos e meus amigos adoravam-no e eram frequentes visitas na nossa casa exclusivamente para ele. Por essa época, percebemos a necessidade de arranjá-lo uma namorada, pois estava a fazer amor loucamente e o tempo inteiro com um ursinho de pelúcia. Foi então que encontramos uma pretendente a duas ruas de nossa casa: chamava-se Belinha, uma pinscher escura e maior que o Biriba. Deixamos ele na casa dela e desde cedo os dois se deram muito bem, envolvendo-se com uma paixão arrebatadora.

Biriba ficou por lá pouquíssimo tempo, algo como dois dias. Quando retornou, contudo, já não era mais o mesmo: estava completamente apaixonado. Não dava mais a menor bola para o ursinho de pelúcia nem corria atrás dos passarinhos. Suas preocupações passaram a consistir basicamente em ficar sempre atento a um descuido de nossa parte com o portão da casa para fugir apressadamente. E quando isso acontecia, já sabíamos onde encontrá-lo: em frente a casa da Belinha, namorando por entre as grades, trocando beijinhos de esquimó. 

Foi então que um dia calhou de acontecer: era noite e minha mãe chegava da faculdade. Ela abriu o portão e nem eu nem meu pai estávamos prestando atenção no Biriba, que naturalmente aproveitou para fugir. Mas dessa vez o cachorro da vizinha da frente estava solto, um vira-lata mal encarado que inclusive chegou a me atacar certa vez. Não vi a cena, mas minha mãe conta que ele deu uma única mordida no Biriba, que sequer latiu. Desesperados, levamos ele correndo para um veterinário, mas já não tinha jeito: uma hemorragia interna havia consumido meu primeiro e tão amado cachorrinho.

Voltamos para casa, todos chorando copiosamente. Limpamos o Biriba e deixamos ele em sua caminha. Fui deitar e não consegui dormir, atormentado pelo acontecimento. Biriba, que era tão valente, morreu em silêncio. Tinha a cabeça em outro lugar, estava tomado pelo amor. E nós o segurávamos, por isso ele precisava fugir. Será que ele morreu chateado conosco, que prezávamos mais a nossa propriedade sobre ele do que seus próprios sentimentos?

Não sei, não sei... O que sei é que quando precisei levantar e ir para a escola no dia seguinte, passei pelo Biriba em sua caminha e ele parecia estar simplesmente dormindo. E que logo acordaria e iria arranhar minha porta. E rosnar aos meus beliscões. E correr atrás dos passarinhos. Não pude evitar de chorar novamente.

Depois da aula, pela tarde, fizemos o enterro do Biriba. Eu acompanhei tudo e o atestado de meus olhos é que hoje ele repousa num terreno na parte de trás da loja, enrolado numa bandeira do Botafogo. Mas prefiro acreditar sinceramente que agora ele é uma estrela solitária lá no céu, que nos conduz.

Gabriel Coelho

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Louca Saudade

Louca Saudade


Acho que estou enlouquecendo
Saudades daqueles abraços
E beijos, que não foram dados
Mas ainda continuo vendo

Na vida vil, eu apeteço
Daquelas noites bem curtidas
Momentos de dor, despedidas
Com pessoas que não conheço

Minha alegria devastada
Por essa tristeza amargurada
Que nem mesmo sei o porquê

Sinto saudades de não ter
Saudades do que não vivi
Que como chaga, enlouquece-me

Felipe Chads