Eu iria
postar agora a parte dois do poema Sinestesia,
mas os dois últimos textos publicados são de tão bom grado, que despertaram
em mim uma reflexão profunda.
Apesar
de falarem de morte - e não serem, definitivamente, mórbidos - eu vejo neles,
entranhado, nas profundezas da reflexão, não a despedida derradeira, nem a paz
eterna, mas a transcendência simbólica. Não se enganes ao pensar que ao falar
em transcendência falo de metafísica ou crenças pós-morte, seja de qual natureza
for. Aqui falo da transcendência simbólica do ícone. Falo do que significa a
morte para aqueles que ficam; de que forma a morte, seja ela natural ou não,
demostra uma ligação íntima com a vida e as aspirações do ícone que transcende.
Aqui a morte expressa o último ato, o encerramento perfeito, a transcendência
da imagem criada. Aqui a morte é o fechamento de uma peça, que não podia ter um
outro fim.
Essa
transcendência ficará clara ao reanalisarmos os exemplos propostos por meus
caros colegas.
Giordano
Bruno. Quem mais poderia simbolizar a transcendência de forma fiel do que o
filósofo do infinito. Do infinito não só por este ser a base de seu pensamento,
mas também por ser o atributo máximo de sua sabedoria. Bruno antecipou a ideia
da infinidade do universo, da existência de infinitas outras estrelas e
planetas, da relatividade e até mesmo, há quem defenda, do evolucionismo.
Realmente, que genialidade infinita. Foi condenado a fogueira por aqueles que possuíam uma infinidade também, mas de ignorância. Kundera acerta quando diz
que o eminente filósofo foi queimado para que sua vida se transformasse “na
incandescência de um sinal, na luz de um farol, uma tocha que brilha ao longe
no espaço dos tempos”. A fogueira o libertou. Libertou essa alma que aspirava a
transcendência da infinitude. Sua morte é o símbolo de seu pensamento. Ao
contrário do que acreditavam seus carrascos, era a afirmação de sua heresia
libertadora. Giordano transcendeu ao infinito, se juntou àquelas infindáveis
estrelas que contemplara. Giordano é agora o infinito em si. Transcendeu àquilo
que aspirava. Não podia ser diferente. Será lembrado no infinito de todo o sempre.
Ícaro,
o jovem deslumbrado. É uma demonstração clara de quem anseia sempre pela
transcendência da vida. Inebriado pela sua capacidade supra-humana, deparando-se,
enfim, com uma realidade digna de seu ancestral mitológico, Ícaro necessita
mais, ele anseia a transcendência. Engana-se quem acredita que seu mergulho no
mar Egeu é uma queda acidental. Não. É o esplendor de quem não pertence mais a
esse mundo dos mortais, é a transposição daquele que já superou as barreiras e
amarras que seguram, ainda, os que não são capazes de contemplar a magnitude da
transcendência. Foi isso que Ícaro fez; ele transcendeu. Ele não apenas fugiu
de sua prisão insular, ele fugiu de sua condição de homem mortal, para transpor
àquela realidade divina, a qual ele havia contemplado, ou melhor, a qual ele
havia vivenciado. O voo de Ícaro é uma verdadeira catarse, e sua queda e morte
é o ato final dessa sinfonia de purificação que o eleva definitivamente a
transcendência dos supra-humanos. Não podia ser diferente. Ícaro não era mais
humano, não poderia mais ficar em tão desgraçada terra. Ícaro não caiu em mar,
mas atingiu, definitivamente, o céu.
Ofélia,
a doce moça. Submissa ao seu pai, e apaixonada por seu querido Hamlet. Submersa
no fatal dilema: ser fiel a quem? a qual dos dois amores? Que dilema mais cruel
para alguém tão doce quanto a bela Ofélia. A traição é o norte da peça
shakespeariana, e quem trai a doce Ofélia é a sua própria existência. Tão
imaculada personagem não merecia nem estar entranhada em tão hedionda história,
trágica do início ao fim. A morte de Ofélia é o símbolo de sua alma. A loucura
da moça era a afirmação de sua aspiração pela transcendência. A vida já não
bastava mais, não era em terra que se curaria, não era em vida que resolveria
seu dilema. O afogar da moça, como diz Kundera, é a sua submersão na imensidão
do caos de sua própria alma. Só aspiraria a paz submergindo no fundo da
negritude de sua alma, só quando a loucura completasse seu ciclo. E completou.
Submergiu o mais fundo que pode, e, enfim, transcendeu. E a paz dilacerou a
cruel chaga da doce moça. Não podia ser diferente. Como diz Hamlet: “Imaginar
que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que
constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se.” E almejou a
pequena Ófelia, mas não o sono, mas o despertar da transcendência de sua alma
demente.
E
John Lennon, o homem símbolo da banda de maior sucesso da história desse
planeta. Tão conhecida e reconhecida, que um dia chegou-se a levantar a
polêmica que Os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Pois bem, caro
amigo, se chegaste a esse patamar, se és tão reconhecido quanto Cristo, que
arques com as demandas dessa posição transcendente. Se Cristo morreu para
salvar a todos que amou, se morreu para libertar-nos do pecado, que morras tu,
querido John, para salvar a todos que te amaram, que mostres que atingiste
definitivamente essa elevação, e morre pela mão daquele que encantaste, daquele
que quiseste tocar o coração com tuas melodias. John Lennon não foi morto por um fã, foi morto por um apóstolo que lhe traiu a vida - assim como Judas fez com
Cristo – mas lhe entregou a transcendência da morte. Dizem que textos apócrifos
demonstram o pedido de Jesus pela traição de Judas. "Tu vais ultrapassar
todos. Tu sacrificarás o homem que me revestiu", teria dito o Cristo. Pois
essa frase demonstra o esplendor da transcendência. Portanto estas traições, se
é que possamos chamar assim, não são o encerramento da vida do mestre, mas a
afirmação da transposição do símbolo. Não podia ser diferente. Morreste em nome
da vida que levaste. Agora sim, John. Agora és tão messias quanto Cristo.
E a
morte natural? Repito a pergunta de meu caro amigo, mas agora com outro teor. O
que ela nos diz sobre a transcendência?
Como
já se foi dito no magnífico texto de Gabriel Coelho, a morte natural “traz em
si a ideia de completude, de um estágio existencial em que não há mais necessidade
de nenhum complemento”. A morte não aspira a transcendência, ela afirma a
transcendência já atingida em vida. A vida é o bastante.
Como
já foi dito, as últimas palavras do magnífico filósofo Immanuel Kant foram “Es
ist gut”, que podem ser entendidas como um “está bom” para seu secretario, ou
um “é o bastante” para a sua própria vida. Ninguém é tão símbolo da transcendência
em vida como o filósofo de Königsberg. Kant era pragmático, sim, e viveu uma
vida pacata. Mas a transcendência não está nas grandes tragédias. Está no
símbolo, está no númeno dos grandes feitos. Kant é a personificação da
edificação de uma revolução no pensamento. Kant transcendeu a sua realidade.
Kant transcendeu o seu mundo. Kant reformulou tudo aquilo que se era pensado.
Kant criou as bases, abriu as portas para o mundo contemporâneo. Kant é mais do
que um filósofo, ele é transcendente – ou melhor, transcendental. De que
necessita, tão ilustre figura, de uma morte simbólica? Que necessidade possuía
Kant de afirmar sua vida numa tragédia? Nenhuma. A vida de Kant é a
transcendência por excelência, e sua morte, realmente, é só a afirmação desta realidade.
Não podia ser diferente. O que fizeste em vida foi o bastante para transcender.
Tua morte é apenas o fechar das cortinas de uma sinfonia já completa, já
contida em si. “Es ist gut”. É o
bastante, Kant.
E o
nosso poetinha? Vinicius de Moraes, um boêmio por excelência. Engana-se quem
pensa que a transcendência consiste só nos grandes feitos, nas revoluções do
pensamento. Não. A transcendência é subjetiva, ela possui a peculiaridade da
busca individual. Transcender é alcançar aquilo que a alma aspira, é chegar no
fundo da realização, no esplendor da vontade pessoal. A boemia era a vida de
nosso ilustre poeta, amar, no sentido consumativo do verbo, indistintamente,
quantas fossem, quando fosse, esse era o esplendor da boemia, era pra isso que
ela existia em Vinicius. Sim, nosso poetinha transcendeu em vida porque almejou
seu amor fugaz, porque viveu sua boemia da forma que só Vinicius poderia
viver. Não podia ser diferente. Nosso grande poeta transcendeu na boemia,
porque a vida já lhe tinha sido o bastante.
E o
nosso poderoso chefão? Michael Corleone é o exemplo da transcendência em vida
que se encerra com grande anterioridade a própria morte. Como já falei a
transcendência é pessoal, consiste em numa realização da vontade subjetiva. E
como que almejava transcender o mafioso mais famoso da história? Ora, como?! Sendo o poderoso chefão, como mais? Michael Corleone transcendeu em vida nos
seus negócios escusos, esse era seu objetivo, para isso não mediu esforços, E
por fim, se retirou. Se entregou a paz, pois sua velhice e cansaço não eram do
corpo, mas da alma que já transcendera e esperava agora o apagar das luzes. Era
isso que esperava nosso mafioso ao se sentar em frente sua casa. Esperava o
apagar das luzes, enquanto revivia em memória o esplendor de sua vida
transcendente. Não podia ser diferente. A serenidade da morte é a serenidade da
alma elevada. A bengala cai ao chão, mas o espírito do poderoso chefão já se
elevara há muito.
Vê-se,
enfim, que a morte é a afirmação da vida. Mas não dessa vida abstrata e geral que
ouvimos no dia-a-dia, mas da vida de quem vive, da vida de cada um. Da doce
Ofélia ao pragmático Kant, a morte traz a transcendência daquilo que é demandado
pela vida que foi vivida. A transcendência em morte só é necessária se esta não
se consumou em vida. A transcendência é uma afirmação do símbolo, seja pra quem
fique, seja pra quem morra. Não nos interessa qual a magnitude da
transcendência, o que importa é que ela acalente a alma.
Felipe Chads