terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A opressão das massas

Ao contrário do que possa parecer pelo título,
esse texto não é um ensaio marxista.

É, na realidade, apenas uma bobagem que pensei divagação.

Vim passar uns dias em São Paulo e me hospedei na casa de meu tio, um apartamento muito do seu bem localizado, logo atrás do MASP, a cem metros da famigerada Avenida Paulista. Da janela da sala de estar, onde estou agora, posso ver vários prédios, mas não posso contá-los. Perco a conta, são prédios demais.

E é gente demais também. No metrô, ontem, demorei uma hora para fazer um trajeto simples, de poucas estações. Imagina na Copa só, havia tanta gente que só pude entrar num vagão depois de 4 ou 5 trens passarem. Na vinte e cinco de março, a mesma coisa: gente que não acabava mais, e dois tipos de pessoas (vamos dividi-las assim, em dois grandes grupos, na vinte e cinco de março) interagiam de um jeito curioso: vendedores berravam, gritavam, bradavam, uivavam, clamavam, anunciavam, urravam, rugiam, exclamavam seus produtos; e transeuntes ignoravam, desprezavam, evitavam, desconsideravam, desmereciam, desatendiam, cagavam para os berros, gritos, brados, uivos, conclames, anúncios, urros e rugidos dos vendedores.

É um efeito dessa quantidade toda de gente. E de prédio. E de barulho. De tudo.

Me considero um bom fisionomista; não se ofenda, se você, que está lendo, eventualmente se encontrou comigo e eu não lembrei quem você era. Acontece, oras. Mas, no geral, acho que sou um bom fisionomista, certamente algum ranço genético de meu pai, que sabe a cara de todo mundo (além dos sobrenomes, procedência e história pessoal).

Consigo guardar rostos com uma certa facilidade. Lembro muito bem, por exemplo, o rosto da operadora de caixa da Panificadora Elisa, em Manaus. Uma senhora morena, que usa o cabelo preso em coque e é extremamente simpática com todos. No entanto, não ideia, nem mesmo a mínima, de como se parece a operadora de caixa da padaria onde tomei café da manhã hoje; e nem o garçom. Não poderia descrevê-los nem superficialmente, se gordos ou magros, carecas ou cabeludos etc.

Deve fazer parte da dinâmica de grandes cidades isso. De cidades enormes. Imagino que Tóquio deva ser mais ou menos assim também. Aliás, Tóquio deve ser bem pior, porque todos os habitantes são iguais. Nova Iorque, vá lá, um exemplo melhor. Em NY as pessoas não gritam - tirando em Chinatown - os seus produtos, mas o passante ignora o mundo tal qual, com seus fones e ouvido e telefones celulares. Não se cria vínculo, não se decora rosto, não se pergunta nome. É claro que essas são coisas cada vez mais difícil - criar um vínculo, evento oldschool mesmo - mas acho que nas grandes cidades acontece mais.

Talvez seja um efeito da opressão das massas. Massas de pessoas, carros, prédios, papéis, produtos, horários, bares, possibilidades. As possibilidades também oprimem. Às vezes fico feliz em não ter opção, porque aí não terei que conviver com uma escolha ruim que eu porventura tomar.

Sempre penso nas histórias das pessoas, quando vou a uma dessas cidades. Pensei muito quando fui a Nova Iorque, penso sempre quando venho a São Paulo, já pensei a mesma coisa no Rio, em Marraquexe, em Barcelona (não em Madrid, curiosamente. Não que não seja o caso de pensar, mas é que não pensei nisso quando estive lá. Passei com pressa).

É que as pessoas têm histórias, até mesmo interessantes, e sobre as quais não refletimos nada, porque existem pessoas demais ao nosso redor, e sempre estamos mais interessados em nós mesmos ou nas pessoas com quem estamos. É preciso quebrar essa corrente às vezes, a que nos prende a nós mesmos.

Fui sozinho a Barcelona. Já morava na Europa há uns quatro meses e via o tempo passar sem cartões postais e lembranças de viagens se somassem à minha vida. Via as fotos de outras pessoas que moravam na Europa e pensava que os seis meses que eu ia passar lá não estavam sendo tão bem aproveitados, já que eu não viajava tanto. Me faltava companhia para viajar. Fiz um grande amigo carioca e mochilamos por quinze dias pela Europa Central, foi ótimo; mas ele já tinha ido a algumas cidades que eu queria conhecer (tipo Barcelona), ou então as nossas agendas na faculdade não batiam, e ele não pode fazer nenhuma outra viagem comigo. E aí eu decidi começar viajar sozinho. Era isso ou ficar em casa. E ficar em casa não era uma opção, principalmente quando uma passagem de avião custa dez euros.

Foi um pouco deprimente, ter que pedir para uma pessoa aleatória tirar uma foto sua no momento x ou na igreja y, já que nem uma alma te acompanha na sua solitária viagem. Ou fazer selfie nos lugares. Ou não saber o que fazer à noite. E jantar sozinho. Mas era isso ou ficar em casa, e eu descobri que viajar sozinho não era tão ruim, por vários motivos: você começa a refletir muito sobre as coisas, sobre as histórias das pessoas (era onde eu queria chegar), além de aprender a conhecer gente nova, escutar gente nova, a se divertir sozinho, a se bastar, a ousar ir para uma boate do outro lado da cidade com caminhoneiros irlandeses que você conheceu no seu quarto do albergue. Você não faz isso quando viaja com alguém. Tem que pensar no outro, fazer um horário, demorar mais num museu chato, demorar menos num bar legal. Enfim.

Na frente do meu albergue tinha esse bar interessante, com uma bartender linda. Linda mesmo, tão linda que eu acabei indo no bar uns três dias seguidos, só para poder ficar olhando e batendo papo com ela. No último dia ela até me deu (clandestinamente) até um copo do bar, uma taça da cerveja catalã Estrella Damm, que é uma delícia. Depois quebrou (deixei no escorredor de louça que ficava em cima da geladeira, que ficava encostada na máquina de lavar, que tremeu demais durante um ciclo de lavar calça jeans e fez tremer a geladeira, que fez tremer o escorredor de louça, de onde caiu o copo).

Não lembro o nome dela, mas vamos chamá-la de Maia, que é um nome tipicamente catalão. A Maia tinha 25 anos e trabalhava todos os dias como bartender, mas era formada em psicologia e estava terminando o mestrado. Queria trabalhar na área, mas não tinha muita expectativa de sair do bar. Foi nesse momento que eu comecei a entender um pouco a situação pela qual passava a Europa (e ainda passa). Conversar com Maia me fez entender um contexto socioeconômico melhor do que ler um jornal. Bom, e a Maia morava com o namorado, um brasileiro de Salvador. Ela sabia falar "soteropolitano". Ele era músico, eu acho, e ela também tocava violão e cantava. Acho que cantava, já não tenho certeza. Moça simpática - e linda. E com uma história, que poderia ter passado despercebida diante da opressão das "massas". Ainda bem que não passou.

Paulo Lindoso