quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Mini concurso de poesia sobre sono e tédio, durante uma aula de Direito do Trabalho II

Senhora das aulas

Chega sem avisar, de repente:
Sensação invasiva, de torpor
Que esfria toda quentura e ardor
E em todo o mundo o homem sente

És aura sombria e poderosa
Senhora das filas, consultórios
Subjuga os ricos e os simplórios
Com a tua ira em calma polvorosa

Ah, Sonolência, rainha das aulas tediosas!
Manda minha atenção para o inferno
Arrasta-me para a escuridão

Quando fechas minhas pálpebras
Dando a elas o peso do universo
Em sonolenta e tediosa sensação...

Paulo Lindoso


Curso errado

Pesam-me os olhos cansados
À procura do sono profundo
E até pareço um moribundo
Que triste jaz atordoado

Suspiro os sonhos vindouros
Com seu perfume de fantasia
E fico a soluçar melancolia
À vista do devaneio inalcançado

Mas não chego ao sonho
Nem me leva o sono
E pela realidade sou duramente castigado

Na minha cabeça 
um só pensamento:
Acho que estou fazendo o curso errado...

Gabriel Coelho
O único não poeta do Clube

Professora

Dia sim, dia não, tu me dás trabalho...
Tu, com a tua obesidade ululante
Falando de reclamada, reclamante
Diante deste aluno humano e falho

Tu, com teu apelido de réptil fantasioso,
Sibilando horas sobre férias e FGTS
A minha alma estudantil adoece
Ferida por este assunto odioso

Cuca, mestre minha, levanta-te e anda!
Serias capaz de fechar essa CLT?
Não sei por que insistes. Por quê?

Tortura-nos com a disciplina laboral...
O tempo para, tua voz me adormece
E eu rogo que chegue essa aula ao final!

Paulo Lindoso
O Gabriel mentiu...

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sinestesia
A sinapse do verso




II


E do pensar se gera matéria magra,
Da ingenuidade do indecente desejo
Nasce, em palavras, a beleza de um beijo,
A vontade representativa do nada

E o sentimentalismo em seu ensejo,
Como uma flor que jaz recém fecundada,
Aproveita, assim, pancada por pancada
A potência de vontade do desejo

Inexplicavelmente surge o efeito,
Na forma livre, de cantos ou de sonetos,
Da natureza humana incompreendida

Do éter vem essa arte inebriante,
Que cria laços de Píndaro a Cervantes,

Da substância que preenche a vida


Felipe Chads

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Quem somos nós?

Certa vez, conversando com um amigo, ele me contou que resolvera visitar um psicólogo, porque queria apertar um pouco seus parafusos. Contou-me que havia relutado muito, mas que um belo dia tinha ligado para o consultório e marcado um horário. Lá chegando, acomodou-se no divã e, após as considerações iniciais de praxe, ouviu a seguinte pergunta vinda do terapeuta: “quem é você?”.

Disse que não soube responder e que, diante do fato de simplesmente não poder responder àquela pergunta, desabou em lágrimas. Chorava copiosamente enquanto se dava conta de que não sabia quem era ele próprio, até que enfim se acalmou a deu curso à consulta. E a partir daí eu já tinha deixado de prestar atenção no relato sobre a primeira sessão de terapia e me concentrava, incomodado, na pergunta que tinha deixado meu colega tão fora de si: “quem é você?”.

Albert Camus, escritor francês, possui uma célebre frase: “Se queres ser reconhecido, é só dizeres quem és. Creio que não sabemos quem somos. O que alguém faz, no fundo, é muito mais importante do que o que sabe sobre si mesmo”. José Saramago, noutro passo, dizia que viver sem saber onde estamos era algo na vida que não poderia suportar, arrematava com ironia: “Sim, estamos na Terra, no sistema solar, na galáxia, mas realmente onde estamos?”. Não sabemos, José.


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Triste é ser quem não se quer ser (ou o desespero de um alemão apaixonado pelo Brasil)

Oskar Schwermut não via exatamente um problema em ser alemão, mas gostaria mesmo é de ser brasileiro. Nascido em Munique, nunca entendera os delírios de seus colegas pela bratwurst, e nem vibrava verdadeiramente pelo Bayern München, embora fingisse torcer para não decepcionar sua família. Gostava mais do Flamengo, da bossa nova e da feijoada.
A propósito, uma das grandes angústias de Oskar era o fato de Vinícius de Moraes ter dito que o uísque era o melhor amigo do homem, era o cachorro engarrafado. Se havia uma paixão alemã que era mantida por Oskar, era a cerveja; mas não por ter tido a adolescência regada a noitadas com Hacker-Pschorr, e sim por saber que a cerveja também era paixão nacional dos brasileiros. Como poderia, portanto, ter Vinícius de Moraes dito que o uísque – iguaria escocesa! – era o melhor amigo do homem? Isso Oskar não entendia.
Oskar não conseguia compreender muitas coisas. Não entendia o que era saudade, porque a tradução que se dava a “saudade”, em alemão, era “sehnsucht”, que mais tinha a ver com ansiedade. Oskar não entendia por que os grandes compositores brasileiros falavam tanto sobre “ansiedade”. “Chega de saudade”, aos ouvidos de Oskar, parecia “Chega de ansiedade”, e o título da música dava a impressão de ser mais sobre alguém que sofria de transtornos psiquiátricos do que sobre alguém que sofria pela distância da pessoa amada.
Oskar também não entendia por que era tão caro voar de Munique ao Rio de Janeiro, e nem entendia como poderia ter nascido alemão, se se sentia brasileiro da cabeça aos pés. Sempre gostou de bossa nova, mas se identificou mais com Vinícius de Moraes quando soube que ele, caucasiano, havia dito que seria o “branco mais preto do Brasil”. Se assim fosse, Oskar seria o alemão mais brasileiro do mundo. Havia até criado uma palavra – em português, obviamente – para a sua condição sui generis: brasilófilo. Era a junção de Brasil + filia, expressão latina que indicava afeição, prazer, gosto.
Foi numa curta viagem de negócios a Berlim que Oskar teve mais uma de suas grandes angústias. Lia qualquer coisa em uma revista qualquer, enquanto degustava uma cerveja no centro da cidade, e viu que o termo que tinha “criado”, na verdade, já existia. Brasilófilo era, na língua portuguesa, alguém que era “amigo do Brasil”. Não ficou satisfeito, por dois motivos: o primeiro, por não ter cunhado o termo; e o segundo, por não considerar certo o significado da palavra. Ora, amigo do Brasil é quem vai de férias ao Rio e compra uma miniatura do Cristo Redentor, pensava (em alemão, naturalmente). Oskar sentia que sua brasilofilia consistia em ser, não só amigo do Brasil, mas brasileiro por dentro.
A descoberta arruinara seu dia. Oskar, sentado numa das mesas daquele simpático barzinho, fitou a Berlim que crescia diante dos seus olhos, ao sol poente, enquanto levava à boca mais um gole de cerveja. Sentiu, então, uma pontada no peito: uma dor excruciante ardeu-lhe o coração e o fez derrubar a caneca de cerveja, que se espatifou no chão e lhe causou uma intensa vertigem.
Voltou a si, apertando os olhos e pensou: a descoberta arruinara seu dia, não fosse ter conhecido Lygia.
Após sua intensa e breve cardialgia, Oskar notou a caneca intacta em cima de sua mesa, um violão apoiado na cadeira ao lado e uma moça morena, numa mesa próxima, fitando-lhe atentamente. Não possuía a beleza das mulheres do século XXI, fabricadas ao rigor dos ditames da moda, mas tinha, de fato, beleza ímpar, e olhos tão cativantes que o fizeram ignorar completamente o fato de seu copo de cerveja estar intacto e a inusitada presença de um violão ao seu lado.
A distinta mulher terminou o drink que tomava, levantou-se e se dirigiu até a mesa de Oskar, num caminhar despretensioso que o lembrou do recuo das ondas do Atlântico antes da rebentação, muito embora jamais o tivesse visto pessoalmente. “Herr Schwermut, sim?”, ela disse, “Sou sua fã número um”, e se sentou. Ousada, pediu ao garçom mais um drink e comentou que se chamava Lygia, que há muito tinha vontade de conhecê-lo, não podendo perder a oportunidade de tê-lo encontrado ali sozinho, e que adorava suas canções.
Oskar não entendeu.

domingo, 10 de novembro de 2013

Como se perde a fé

Quando criança, todas as noites antes de dormir eu costumava rezar pelo menos três orações: a do Pai Nosso, a da Ave Maria e a do meu anjinho da guarda, que eu mesmo tinha inventado. Não lembro exatamente, mas acredito que a origem dessa minha oração remonta a um certo dia em que minha mãe, ao vir me dar o beijo de boa noite, perguntou se eu já havia "pedido a proteção do meu anjinho da guarda". Fiz então uma prece ao meu anjinho naquele mesmo momento, e passei a repeti-la todos os dias por muito tempo dali em diante.

Meu anjinho da guarda me proteja, proteja meu pai, minha mãe, meus tios, minhas tias e a todas as pessoas do mundo”. Era essa minha pequena oração, que eu fazia religiosamente todas as noites. Era inclusive a que eu mais gostava, pois das outras duas eu pouco entendia, havia apenas decorado. Já da minha eu entendia cada palavra, e sentia que ao fazê-la eu jogava uma rede de proteção que cobria o mundo inteiro, que dali pra frente nada de mal poderia acontecer a ninguém. 

O problema teve início quando eu comecei a achar que a expressão “todas as pessoas do mundo” tinha um valor inferior aos nomes que eu fazia questão de mencionar. A minha intenção era de que realmente todas as pessoas do mundo tivessem proteção, mas me pareceu que aqueles que eu falava o nome estavam mais protegidos. Sendo assim, eu tinha que acrescentar muita gente à minha lista.

Meu anjinho da guarda me proteja, proteja meu pai, minha mãe, meus tios, minhas tias, meus irmãos, minha irmã, meus primos, minhas primas, meus avós e a todas as pessoas do mundo”. Fiquei satisfeito com essa versão até me apaixonar por uma menina do colégio, e então me pareceu absolutamente necessário colocá-la naquele rol de privilegiados. E depois lembrei de meus amigos, que eram tão importantes para mim, logo não mereciam ficar na “semi-proteção” junto com todas as pessoas do mundo.

Meu anjinho da guarda me proteja, proteja meu pai, minha mãe, meus tios, minhas tias, meus irmãos, minha irmã, meus primos, minhas primas, meus avós, a fulana, meus amigos e a todas as pessoas do mundo”. Daqui pra frente, só de pensar em fazer minha oração eu já sentia um cansaço antecipado. E como eu a fazia logo antes de dormir, era realmente penoso: eu tinha muito sono, mas a proteção de toda aquela gente ainda dependia do meu anjinho da guarda. 

Por essa mesma época eu também comecei a perceber que as pessoas morriam invariavelmente, apesar da minha oração. Fiquei terrivelmente decepcionado, não conseguia acreditar que meu anjinho da guarda pudesse falhar. Lembro bem de ter pensado (na busca de uma justificativa para os deslizes do meu anjinho) que a proteção talvez só funcionasse se todas as pessoas do mundo fizessem a minha oração antes de dormir. Imaginem se eu tivesse me convencido disso pra valer, poderia ter criado uma nova religião!

E foi então que aos poucos eu fui cedendo cada vez mais à preguiça e deixando de fazer minha pequena oração. O temor de que alguém pudesse morrer pela minha omissão já não tomava conta de mim. “Vai acontecer de qualquer jeito...”, eu pensava, todo triste. E estava assim até que um dia simplesmente parei de fazer qualquer oração. 

Hoje sinto falta do meu anjinho da guarda. Recentemente, com os problemas da vida, tentei conversar um pouco com ele antes de dormir, mas tive a estranha sensação de que ele não estava me escutando, de que eu estava simplesmente pensando comigo mesmo. Percebi então que agora mais do que nunca eu estava sozinho nesse mundão de meu Deus, e que se era pra acreditar em algo, só me restava acreditar em mim. Logo eu, tão falho e incapaz de proteger quem quer que seja nessa vida desvairada... 

Parece que não sou muito diferente do meu anjinho da guarda.

 
Gabriel Coelho

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A transcendência do símbolo





Eu iria postar agora a parte dois do poema Sinestesia, mas os dois últimos textos publicados são de tão bom grado, que despertaram em mim uma reflexão profunda.

Apesar de falarem de morte - e não serem, definitivamente, mórbidos - eu vejo neles, entranhado, nas profundezas da reflexão, não a despedida derradeira, nem a paz eterna, mas a transcendência simbólica. Não se enganes ao pensar que ao falar em transcendência falo de metafísica ou crenças pós-morte, seja de qual natureza for. Aqui falo da transcendência simbólica do ícone. Falo do que significa a morte para aqueles que ficam; de que forma a morte, seja ela natural ou não, demostra uma ligação íntima com a vida e as aspirações do ícone que transcende. Aqui a morte expressa o último ato, o encerramento perfeito, a transcendência da imagem criada. Aqui a morte é o fechamento de uma peça, que não podia ter um outro fim.

Essa transcendência ficará clara ao reanalisarmos os exemplos propostos por meus caros colegas.

Giordano Bruno. Quem mais poderia simbolizar a transcendência de forma fiel do que o filósofo do infinito. Do infinito não só por este ser a base de seu pensamento, mas também por ser o atributo máximo de sua sabedoria. Bruno antecipou a ideia da infinidade do universo, da existência de infinitas outras estrelas e planetas, da relatividade e até mesmo, há quem defenda, do evolucionismo. Realmente, que genialidade infinita. Foi condenado a fogueira por aqueles que possuíam uma infinidade também, mas de ignorância. Kundera acerta quando diz que o eminente filósofo foi queimado para que sua vida se transformasse “na incandescência de um sinal, na luz de um farol, uma tocha que brilha ao longe no espaço dos tempos”. A fogueira o libertou. Libertou essa alma que aspirava a transcendência da infinitude. Sua morte é o símbolo de seu pensamento. Ao contrário do que acreditavam seus carrascos, era a afirmação de sua heresia libertadora. Giordano transcendeu ao infinito, se juntou àquelas infindáveis estrelas que contemplara. Giordano é agora o infinito em si. Transcendeu àquilo que aspirava. Não podia ser diferente. Será lembrado no infinito de todo o sempre.

Ícaro, o jovem deslumbrado. É uma demonstração clara de quem anseia sempre pela transcendência da vida. Inebriado pela sua capacidade supra-humana, deparando-se, enfim, com uma realidade digna de seu ancestral mitológico, Ícaro necessita mais, ele anseia a transcendência. Engana-se quem acredita que seu mergulho no mar Egeu é uma queda acidental. Não. É o esplendor de quem não pertence mais a esse mundo dos mortais, é a transposição daquele que já superou as barreiras e amarras que seguram, ainda, os que não são capazes de contemplar a magnitude da transcendência. Foi isso que Ícaro fez; ele transcendeu. Ele não apenas fugiu de sua prisão insular, ele fugiu de sua condição de homem mortal, para transpor àquela realidade divina, a qual ele havia contemplado, ou melhor, a qual ele havia vivenciado. O voo de Ícaro é uma verdadeira catarse, e sua queda e morte é o ato final dessa sinfonia de purificação que o eleva definitivamente a transcendência dos supra-humanos. Não podia ser diferente. Ícaro não era mais humano, não poderia mais ficar em tão desgraçada terra. Ícaro não caiu em mar, mas atingiu, definitivamente, o céu.

Ofélia, a doce moça. Submissa ao seu pai, e apaixonada por seu querido Hamlet. Submersa no fatal dilema: ser fiel a quem? a qual dos dois amores? Que dilema mais cruel para alguém tão doce quanto a bela Ofélia. A traição é o norte da peça shakespeariana, e quem trai a doce Ofélia é a sua própria existência. Tão imaculada personagem não merecia nem estar entranhada em tão hedionda história, trágica do início ao fim. A morte de Ofélia é o símbolo de sua alma. A loucura da moça era a afirmação de sua aspiração pela transcendência. A vida já não bastava mais, não era em terra que se curaria, não era em vida que resolveria seu dilema. O afogar da moça, como diz Kundera, é a sua submersão na imensidão do caos de sua própria alma. Só aspiraria a paz submergindo no fundo da negritude de sua alma, só quando a loucura completasse seu ciclo. E completou. Submergiu o mais fundo que pode, e, enfim, transcendeu. E a paz dilacerou a cruel chaga da doce moça. Não podia ser diferente. Como diz Hamlet: “Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se.” E almejou a pequena Ófelia, mas não o sono, mas o despertar da transcendência de sua alma demente.

E John Lennon, o homem símbolo da banda de maior sucesso da história desse planeta. Tão conhecida e reconhecida, que um dia chegou-se a levantar a polêmica que Os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. Pois bem, caro amigo, se chegaste a esse patamar, se és tão reconhecido quanto Cristo, que arques com as demandas dessa posição transcendente. Se Cristo morreu para salvar a todos que amou, se morreu para libertar-nos do pecado, que morras tu, querido John, para salvar a todos que te amaram, que mostres que atingiste definitivamente essa elevação, e morre pela mão daquele que encantaste, daquele que quiseste tocar o coração com tuas melodias. John Lennon não foi morto por um fã, foi morto por um apóstolo que lhe traiu a vida - assim como Judas fez com Cristo – mas lhe entregou a transcendência da morte. Dizem que textos apócrifos demonstram o pedido de Jesus pela traição de Judas. "Tu vais ultrapassar todos. Tu sacrificarás o homem que me revestiu", teria dito o Cristo. Pois essa frase demonstra o esplendor da transcendência. Portanto estas traições, se é que possamos chamar assim, não são o encerramento da vida do mestre, mas a afirmação da transposição do símbolo. Não podia ser diferente. Morreste em nome da vida que levaste. Agora sim, John. Agora és tão messias quanto Cristo.

E a morte natural? Repito a pergunta de meu caro amigo, mas agora com outro teor. O que ela nos diz sobre a transcendência?

Como já se foi dito no magnífico texto de Gabriel Coelho, a morte natural “traz em si a ideia de completude, de um estágio existencial em que não há mais necessidade de nenhum complemento”. A morte não aspira a transcendência, ela afirma a transcendência já atingida em vida. A vida é o bastante.

Como já foi dito, as últimas palavras do magnífico filósofo Immanuel Kant foram “Es ist gut”, que podem ser entendidas como um “está bom” para seu secretario, ou um “é o bastante” para a sua própria vida. Ninguém é tão símbolo da transcendência em vida como o filósofo de Königsberg. Kant era pragmático, sim, e viveu uma vida pacata. Mas a transcendência não está nas grandes tragédias. Está no símbolo, está no númeno dos grandes feitos. Kant é a personificação da edificação de uma revolução no pensamento. Kant transcendeu a sua realidade. Kant transcendeu o seu mundo. Kant reformulou tudo aquilo que se era pensado. Kant criou as bases, abriu as portas para o mundo contemporâneo. Kant é mais do que um filósofo, ele é transcendente – ou melhor, transcendental. De que necessita, tão ilustre figura, de uma morte simbólica? Que necessidade possuía Kant de afirmar sua vida numa tragédia? Nenhuma. A vida de Kant é a transcendência por excelência, e sua morte, realmente, é só a afirmação desta realidade. Não podia ser diferente. O que fizeste em vida foi o bastante para transcender. Tua morte é apenas o fechar das cortinas de uma sinfonia já completa, já contida em si.  “Es ist gut”. É o bastante, Kant.

E o nosso poetinha? Vinicius de Moraes, um boêmio por excelência. Engana-se quem pensa que a transcendência consiste só nos grandes feitos, nas revoluções do pensamento. Não. A transcendência é subjetiva, ela possui a peculiaridade da busca individual. Transcender é alcançar aquilo que a alma aspira, é chegar no fundo da realização, no esplendor da vontade pessoal. A boemia era a vida de nosso ilustre poeta, amar, no sentido consumativo do verbo, indistintamente, quantas fossem, quando fosse, esse era o esplendor da boemia, era pra isso que ela existia em Vinicius. Sim, nosso poetinha transcendeu em vida porque almejou seu amor fugaz, porque viveu sua boemia da forma que só Vinicius poderia viver. Não podia ser diferente. Nosso grande poeta transcendeu na boemia, porque a vida já lhe tinha sido o bastante.

E o nosso poderoso chefão? Michael Corleone é o exemplo da transcendência em vida que se encerra com grande anterioridade a própria morte. Como já falei a transcendência é pessoal, consiste em numa realização da vontade subjetiva. E como que almejava transcender o mafioso mais famoso da história? Ora, como?! Sendo o poderoso chefão, como mais? Michael Corleone transcendeu em vida nos seus negócios escusos, esse era seu objetivo, para isso não mediu esforços, E por fim, se retirou. Se entregou a paz, pois sua velhice e cansaço não eram do corpo, mas da alma que já transcendera e esperava agora o apagar das luzes. Era isso que esperava nosso mafioso ao se sentar em frente sua casa. Esperava o apagar das luzes, enquanto revivia em memória o esplendor de sua vida transcendente. Não podia ser diferente. A serenidade da morte é a serenidade da alma elevada. A bengala cai ao chão, mas o espírito do poderoso chefão já se elevara há muito.

Vê-se, enfim, que a morte é a afirmação da vida. Mas não dessa vida abstrata e geral que ouvimos no dia-a-dia, mas da vida de quem vive, da vida de cada um. Da doce Ofélia ao pragmático Kant, a morte traz a transcendência daquilo que é demandado pela vida que foi vivida. A transcendência em morte só é necessária se esta não se consumou em vida. A transcendência é uma afirmação do símbolo, seja pra quem fique, seja pra quem morra. Não nos interessa qual a magnitude da transcendência, o que importa é que ela acalente a alma.


Felipe Chads

domingo, 3 de novembro de 2013

A serenitude do último adeus

Devo, antes de começar qualquer divagação, dizer que achei o último texto de ótimo gosto. Apesar de falar de morte, não o considerei mórbido; aliás, talvez "morte" seja apenas uma palavra, dentre tantas outras, que utilizamos para designar a despedida derradeira da nossa existência...

Mas vamos ao que interessa.

E a morte natural?

Em seu romance “A vida está em outro lugar”, o escritor tcheco Milan Kundera desenvolve uma breve digressão baseando-se na premissa de que “não é indiferente saber de que maneira um homem encontrou a morte e em que elemento”. Para ilustrar seu raciocínio, o eminente romancista lança mão de vários exemplos: cita a queda de Ícaro e seu fatal encontro com a terra, que nos oferece “a imagem da discórdia trágica entre o ar e a gravidade, entre o sonho e o despertar”; lembra Giordano Bruno, que, segundo ele, só poderia morrer pela fogueira, para que sua vida se transformasse “na incandescência de um sinal, na luz de um farol, uma tocha que brilha ao longe no espaço dos tempos”; e, ao final, alude à Ofélia de Hamlet, que só poderia perecer na profundidade das águas, eis que esta se confunde com a profundidade da alma humana, sendo a água o “elemento exterminador daqueles que estão perdidos em si mesmos, no seu amor, nos seus sentimentos, na sua demência...”. [1]

A divagação de Kundera não parece ser desprovida de sentido. Com efeito, podemos encontrar aqui mesmo em terrae brasilis quem se amolde aos seus termos. É o caso de Gonçalves Dias, o “poeta nacional por excelência”, que morreu afogado após o naufrágio da embarcação que o trazia de volta ao Brasil, depois de ter tentado tratar sua saúde na Europa, sem muito sucesso. Conta-se que ele vinha acometido por uma grave doença no peito, num permanente conflito entre o corpo enfermo e o espírito pleno, temendo que Deus permitisse sua morte antes do retorno a sua tão querida terra, até que a água veio liquidar sua inquietude. 

Entretanto, apesar de louvável, a digressão guarda em si o grave incômodo de parecer aplicável unicamente às hipóteses de suicídio ou de grandes tragédias. Resta a pergunta: e a morte natural, que nos diz? A morte pela própria doença, que significação teria? Qual é o sentido do ataque cardíaco de Drummond, apenas doze dias após a morte da filha?  Ou do momento em que Toquinho tentava acordar Vinicius de Moraes, caído numa banheira, dando os últimos longos suspiros que o edema em seu pulmão lhe permitia?

Sem a elegância e o lirismo do autor de “A insustentável leveza do ser”, arrisco dizer que a morte natural traz em si a ideia de completude, de um estágio existencial em que não há mais necessidade de nenhum complemento. Certo seria sequer falar em morte, pois, a todo contrário, trata-se de uma afirmação da vida. Os olhos só se fecham voluntariamente (e para sempre) quando a última vista de que dispõem é de uma harmonia até então desconhecida, numa epifania reveladora de que a vida existe e de que se viveu. E a imagem que a morte natural passa para nós, que ficamos, é de que a vida, tal qual uma obra, pode estar contida em si mesma, podendo ser, por si só, o bastante.

Dizem que as últimas palavras do grande filósofo Immanuel Kant foram “Es ist gut”, que podem ser traduzidas como “É o bastante”. Ao que parece, ele estava se dizendo satisfeito de uma mistura de água e vinho que seu secretário Wasianski lhe oferecia, mas também – e por que não? – talvez houvesse acabado de compreender que a vida basta. E talvez tenha sido isso que os suspiros do Poetinha queriam dizer a Toquinho - aliás, como viveu aquele homem! Da mesma forma, o coração de Drummond (que com o da filha fazia um só), após alguma reflexão, talvez de repente tenha se apercebido de que a vida é assim, e que a vida é tudo. 

Ou talvez (não posso descartar essa possibilidade) toda essa minha especulação não passe de uma ideia torta. Não faz mal: se essa vida é o bastante, certamente é por guardar infindáveis mistérios que talvez jamais iremos desvendar.

Gabriel Coelho


[1] KUNDERA, Milan. A vida está em outro lugar. 1ª ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2012, p. 312. Para ler na íntegra o trecho em comento, clique aqui.